CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA



Ouso postar o extenso assunto abaixo por pensar ser ele muito interessante para renovar conhecimentos históricos, assimilar informações sobre o descobrimento do Brasil, a partir de um documento único, importantíssimo, enfim! Os dois textos abaixo compreendem um de Comentários, cuja leitura sugiro seja feita primeiramente, e, outro, da Carta de Caminha, em sua forma integral de texto mas não de escrita. Esta, a redação, foi adaptada à linguagem atual por linguistas nacionais e cuja leitura recomendo seja feita após Comentários. Há ali, um relato pormenorizado dos primeiros passos da “civilização” em terreno desconhecido e junto a  povos “bárbaros”, “pagãos” e “incultos”, tornando a leitura um agradável retorno a um passado de 500 anos.
Relembro! São textos muito longos, mas valem a pena.


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HISTÓRIA
A carta de Caminha: comentários


A carta de Caminha - o mais minucioso e importante documento relacionado à viagem da esquadra de Cabral ao Brasil - foi publicada pela primeira vez apenas em 1817, mais de trezentos anos após haver sido redigida, como parte do livro Corografia Brasílica..., de autoria de Manuel Aires do Casal Bibliografia. Isto significa que, até essa época, a história contada sobre a viagem de 1500 foi substancialmente diversa da narrada depois. A carta de Caminha contém informações e pormenores sobre a viagem até o Brasil e a estadia nesse país inexistentes nas outras fontes conhecidas.
A partir da primeira publicação, a carta de Caminha, que despertou grande interesse e conquistou enorme público leitor, conheceu várias edições, novas leituras paleográficas e traduções em outra línguas. Desde a sua divulgação, tem sido saudada como um documento raro, capaz tanto de fornecer informações sobre a viagem de 1500, os episódios ocorridos durante a estada da expedição no Brasil, a fauna e a flora brasileira e os índios Tupiniquim, como também de esclarecer várias dimensões da mentalidade e dos interesses dos navegadores da Europa.
O texto de Pero Vaz de Caminha - cidadão da cidade do Porto, mestre da balança da moeda, de família respeitável, porém sem tradições literárias - tem a preocupação básica de informar, procurando transmitir o  máximo possível de dados a respeito do que ocorria e do que o escrivão via, ouvia e sentia. Não se trata nem de um texto carregado de alusões eruditas, ao gosto de muitos escritores e leitores cultos de então, nem de um texto recheado de informações científicas e cosmográficas, também ao gosto da época. Como bem frisou Malheiro Dias Bibliografia, a carta de Caminha é sobretudo "uma narrativa impressionista", na qual são registradas, de forma direta, as impressões do observador a respeito de suas vivências. São preciosas sobretudo as abundantes informações, que ocupam grande parte da carta, a respeito dos Tupiniquim, povo sem escrita dizimado poucas décadas depois, em meio de doenças contraídas dos europeus, contra as quais não possuíam resistência, e da violência dos contatos.
O fato de ser um texto informativo alia-se a outras importantes dimensões do documento. A carta de Caminha insere-se no esforço conjunto dos europeus, concretizado nos textos de viagem da época (especialmente nos escritos por integrantes das expedições), no sentido de construir alteridades, à medida mesmo que os navegantes entravam em contato com diversas terras e povos - alguns, como os índios e o futuro Brasil, totalmente desconhecidos deles -, com os quais seria preciso conviver dali em diante e, para conseguir dominar, sobretudo conhecer. E conhecer significava essencialmente duas coisas: fazer o inventário das diferenças entre cada um dos povos encontrados pelo mundo - seus costumes, idiomas, crenças, alimentos, economias, organizações sociais, etc. - e os povos conhecidos da Europa; e construir categorias a respeito de tais povos, a fim de poder inclui-los no universo mental dos europeus e, dessa forma, lidar na prática com tais povos: "afinal, não se dominam povos porque são 'diferentes', mas sim os tornam 'diferentes' para dominá-los; esta tem sido um constante na história dos povos" Bibliografia
Na época moderna, esse complexo e "longo processo ideológico de construção do outro" Bibliografia aconteceu aos poucos. Conheceu caminhos tortuosos e contraditórios, teceu sua própria história. "Ainda que a descoberta do outro deva ser assumida por cada indivíduo, e recomece eternamente, ela também tem uma história, formas socialmente e culturalmente determinadas" Bibliografia. A carta de Caminha é parte do início do processo histórico de construção do outro pelos europeus, especialmente do outro que vivia no espaço brasileiro. O escrivão português foi minucioso na elaboração do seu inventário de diferenças, incluindo não somente pessoas, mas animais, plantas, relevo, vegetação, clima, solo, produtos da terra, etc.
Tal como a maioria dos textos de viagem da época, a carta de Caminha elaborou grande parte de seu inventário de diferenças com base na analogia com o conhecido, ou seja, com os padrões europeus ou, no máximo, com os observados nas terras e povos do litoral da África ocidental, onde a presença portuguesa já se fazia sentir há décadas. Os corpos e as "vergonhas" das índias brasileiras são comparados aos das europeias, os indígenas não costumavam saudar as pessoas à maneira dos civilizados, o clima não é o mesmo da Europa, etc. - os exemplos são numerosos, espalham-se por todo o texto. Como também era característico dos relatos de viagem do seu tempo, Caminha utilizou-se de outro recurso para construir a diferença em relação ao outro: a projeção, sobre o outro, dos próprios desejos e expectativas dos navegadores. "Isto tomávamo-lo assim por o desejarmos", resumiu o escrivão, ao interpretar como havendo ouro na terra o significado de alguns gestos dos índios. Outros desejos dos portugueses foram projetados na carta de forma menos consciente, como, por exemplo, a conclusão de Caminha de que, por imitarem os gestos dos cristãos durante a missa, os indígenas seriam facilmente convertidos ao cristianismo. Mesclavam-se o conhecido e o desejado, na construção da diferença. Seja pela expressão dos próprios desejos ou pela analogia com o conhecido, os europeus projetaram sobre o outro a sua grande sombra: à medida que decifravam o desconhecido, redimensionavam e redefiniam a si próprios.  
Na carta de Caminha estão também registradas as primeiras tentativas de manejar categorias para apreender esse outro ainda tão novo. Conforme apontam as notas ao texto, as duas mais importantes categorias europeias futuras, relativas aos índios - tanto a do "bom selvagem" quanto a do "selvagem inferior e bestial" (à qual se associou, muitas vezes, a característica "demoníaco") -, estão já sugeridas na carta. Caminha, portanto, construiu não só um inventário das diferenças entre europeus e índios, mas também insinuou categorias importantes para começar a pensar o diferente e com ele lidar.
O texto do escrivão foi além. Reunindo o que viu às categorias que construiu, Caminha completou o ciclo: propôs ao rei, no final de seu texto, caminhos concretos para o aproveitamento do território e de seus habitantes, a saber: o desenvolvimento da agricultura e a cristianização dos índios. O escrivão viu o diferente, apreendeu-o segundo a sua própria mentalidade e, porque fez isso, foi capaz de dar o terceiro passo: sugerir ao monarca os caminhos do futuro, que eram os caminhos da desigualdade entre visitantes e habitantes, os caminhos da dominação portuguesa. Os acontecimentos descritos na carta - o tempo presente da chegada à terra - podiam incluir - como efetivamente incluíram - congraçamentos e danças coletivas entre navegadores portugueses e índios, além de atitudes legítimas de curiosidade, espanto e tolerância, profundamente humanas, por parte do escrivão ou de outros tripulantes, frente à terra bela e à sua gente agreste. Mas o futuro importava, e foi com o olho no futuro que Caminha escreveu sua carta.
Adaptado do livro Brasil 1500: quarenta documentos, de Janaína Amado e Luiz Carlos Figueiredo (Brasília: UnB, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001, pp. 118 a 122)
A carta de Caminha
Carta de Pero Vaz de Caminha a El Rei D. Manuel
Primeiro de maio de 1500


Senhor:
Posto que o capitão-mor desta vossa frota e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza [sobre] a nova do achamento desta vossa nova terra, que nesta navegação ora se achou, não deixarei também de dar minha conta disso a Vossa Alteza, como eu melhor puder, ainda que - para o bem contar e falar -, o saiba fazer pior que todos. Porém, tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual, creia bem [por] certo que - paraaformosentar nem afeiar - haja aqui de pôr mais que aquilo que vi e me pareceu. Aqui não darei conta a Vossa Alteza da marinhagem e singraduras do caminho, porque não o saberei fazer, e os pilotos devem ter esse cuidado. Portanto, senhor, do que hei-de falar, começo e digo:
A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, nove de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã-Canária. Ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três ou quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, a saber, da ilha de São Nicolau, segundo dito do piloto Pero Escolar.
À noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, Vasco de Ataíde perdeu-se da frota com a sua nau, sem aí haver tempo forte nem contrário para [tal coisa] acontecer; o capitão fez suas diligências para o achar, a umas e a outras partes; e [ele] não apareceu mais.
E assim seguimos nosso caminho por esse mar de longo, até terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, quando - estando obra de 660 ou 670 léguas da dita ilha, segundo os pilotos diziam, - topamos alguns sinais de terra, os quais eram: muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e assim outras a que também chamam rabo-de-asno.
E à quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves, a que chamam fura-buxos. E nesse dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra, a saber: primeiramente, de um grande monte mui alto e redondo; de outras serras mais baixas, ao sul dele; e de terrachã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs nome - o Monte Pascoal -, e à terra, a Terra da Vera Cruz. Mandou lançar o prumo: acharam 25 braças. E ao sol posto, obra de seis léguas de terra, surgimos âncoras em 19 braças. Ancoragem limpa. Ali houvemos toda aquela noite.
E à quinta-feira pela manhã, fizemos vela e seguimos direto à terra. Os navios pequenos [iam] adiante, indo por 17, 16, 15, 14, 13, 12, dez e nove braças, até meia légua de terra, onde todos lançamos âncoras em direção à boca de um rio. E chegaríamos a essa ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos. E dali houvemos vista de homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo os [homens dos] navios pequenos disseram, por chegarem primeiro.
Ali lançamos fora os batéis e esquifes. Todos os capitães das naus vieram logo a esta nau do capitão-mor e ali falaram [entre si]. O capitão mandou Nicolau Coelho para terra, no batel, para ver aquele rio. E logo que ele começou a ir para lá, acudiram pela praia homens - quando dois, quando três -, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, estavam ali 18 ou 20 homens pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos e suas setas nas mãos. Vinham todos rijos para o batel. Nicolau Coelho lhes fez sinal que pusessem [no solo] os arcos, e eles os puseram. Ali [ele] não pôde deles obter fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente lhes deu um barrete vermelho e uma carapuça de linho, que levava na cabeça, e um sombreiro preto. Um deles lhe deu um sombreiro de penas de aves compridas com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. Outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o capitão manda a Vossa Alteza. E com isso [Nicolau Coelho] volveu-se às naus, por ser tarde e não poder deles haver fala, porazo do mar. À noite seguinte, ventou tanto sueste com chuvaceiros, que fez caçar as naus, especialmente a capitânea.
E à sexta [feira] pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, o capitão mandou levantar âncoras e fazer vela. Fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados na popa, para o norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde ficássemos para tomar água e lenha, não por já nos minguar, mas para aqui nos acertarmos. E quando fizemos vela, estariam já na praia, assentados junto ao rio, obra de 60 a 70 homens, que se juntaram ali aos poucos. Fomos ao longo [da costa], e mandou o capitão aos navios pequenos que fossem mais chegados à terra e que, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.
Estando nós pela costa, obra de dez léguas donde nós levantamos [ferro], acharam os ditos navios pequenos um arrecife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. Meteram-se dentro e amainaram. E as naus arribaram sobre eles e, um pouco antes do sol posto, amainaram, obra de uma légua do arrecife, e ancoraram em 11 braças [de profundidade].
Estando nosso piloto Afonso Lopes em um daqueles navios pequenos, - por mandado do capitão, por ser homem vivo e destro para isso -, meteu-se logo no esquife a sondar o porto adentro. Tomou, em uma almadia, dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas. Na praia andavam muitos, com seus arcos e setas, e não lhe aproveitaram. Trouxe-os logo, já de noite, ao capitão, onde foram recebidos com muito prazer e festa.
A feição deles é serem pardos, [à] maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura, nem estimam cobrir nenhuma coisa, nem mostrar suas vergonhas: acerca disso, estão em tanta inocência como têm em mostrar o rosto. Ambos traziam furados os beiços de baixo, e metidos neles ossos, ossos brancos, da compridão de uma mão travessa e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como furador; metem-nos pela parte de dentro do beiço, e o que lhe fica entre o beiço e os dentes é feito como roque de xadrez, e de tal maneira o trazem ali encaixado que não lhes dá paixão, nem lhes turva a fala, nem [o] comer, nem [o] beber.
Os seus cabelos são corredios. Andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. Um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, detrás, uma maneira de cabeleira de penas de ave amarela que seria da compridão de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria otoutiço e as orelhas, a qual andava pegada nos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como a cera - e não o era - ; de maneira que andava a cabeleira mui redonda e mui basta e mui igual, que não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
O capitão, quando eles vieram, estava assentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e [tinha] aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia e nós outros, que aqui na nau [estávamos] com ele, uns assentados no chão, nessa alcatifa. Acenderam tochas.
[Os nativos] entraram e não fizeram nenhuma menção de cortesia, nem de falar ao capitão, nem a ninguém. Porém, um deles pôs olho no colar do capitão e começou a acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizia que havia ouro em terra. Também viu um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e então para o castiçal, como que [lá] também havia prata. Mostraram-lhes um papagaio pardo que o capitão traz aqui. Tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como que os havia aí. Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram menção dele. Mostraram-lhes uma galinha; quase haviam medo dela e não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como [que] espantados.
Deram-lhes ali de comer pão e pescado cozido, confeites, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo. E se provavam alguma coisa, lançavam-na logo fora. Trouxeram-lhes vinho numa taça; puseram-lhe assim a boca tão ao de leve e dele não gostaram nada, nem o quiseram mais. Trouxeram-lhes água numa albarrada; tomaram bocados dela e não beberam; somente lavaram as bocas e lançaram fora. Um deles viu umas contas brancas de rosário, acenou que lhas dessem e folgou muito com elas; lançou-as ao pescoço, depois as tirou e embrulhou-as no braço; e acenava para a terra e então para as contas e para o colar do capitão, como que dariam ouro por aquilo. Isto tomávamo-lo assim por o desejarmos, mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar isto nós não queríamos entender, porque não lho havíamos de dar. Depois tornou as contas a quem lhas deu.
Então, estiraram-se assim de costas na alcatifa, a dormir, sem ter nenhuma maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas: as cabeleiras delas [eram] bem rapadas e feitas. O capitão lhes mandou pôr às cabeças seus coxins; e o da cabeleira procurava assaz por a não quebrar. Lançaram-lhes um manto em cima; eles consentiram, ficaram e dormiram.
Ao sábado pela manhã, o capitão mandou fazer vela. Fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta, de seis e sete braças. Entraram todas as naus e ancoraram-se em cinco a seis braças. A qual ancoragem, dentro, é tão grande, tão formosa e tão segura que podem jazer dentro dela mais de 200 navios e naus.
E assim que as naus foram pousadas e ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau do capitão-mor, e daqui o capitão mandou Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas; aos quais mandou dar camisas novas, carapuças vermelhas e dois rosários de contas brancas de osso - que eles levavam nos braços -, cascavéis e campainhas. E mandou com eles, para ficar lá, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para andar lá com eles e saber de seu viver e maneira: e a mim, mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assim como flecha, direto à praia. Ali logo acudiram obra de 200 homens, todos nus e com arcos e flechas nas mãos.
Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes [para] que se afastassem e pusessem os arcos [no chão]. Eles os puseram, mas não se afastaram muito; basta que puseram os arcos. Então, saíram [do batel] os que nós levávamos, e com eles o mancebo degredado. Os quais, logo que saíram, não pararam mais, nem um esperava pelo outro, senão [seguiam] a quem mais corria. Passaram um rio que corre por aí, de água doce e de muita água, que lhes dava pela braga, e muitos outros com eles. Foram assim correndo além do rio, entre umas moitas de palmas, onde estavam outros, e ali pararam. E naquilo foi o degredado com um homem que logo ao sair do batel oagasalhou e o levou até lá. Logo o tornaram a nós; e com ele vieram os outros que nós levamos, os quais vinham já nus e sem carapuças.
Então, muitos começaram a chegar. Entravam pela beira do mar, para os batéis, até que não podiam mais. Traziam cabaços de água e tomavam alguns barris que nós levávamos, enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles chegassem de todo a bordo do batel, mas, junto com ele lançavam-no da mão e nós tomávamo-los. E pediam que lhes dessem alguma coisa. Nicolau Coelho levava cascavéis e manilhas, e [a] uns dava um cascavel e a outros uma manilha, de maneira que com aquela encarnaquase nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e flechas por sombreiros, carapuças de linho e por qualquer coisa que homem lhes quisesse dar. Dali os outros dois mancebos partiram-se, que não os vimos mais.
Andavam ali muitos deles, ou quase a maior parte. Todos traziam aqueles bicos de osso nos beiços; e alguns, que andavam sem eles, traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau que pareciam espelhos de borracha. Alguns traziam três daqueles bicos, a saber, um na metade e outros dois nos cabos. Outros andavam aí esquartejados de cores, a saber, deles a metade da sua própria cor e a metade de tintura negra, [à] maneira de azulada, e outros quartejados de escaques.
Entre eles ali andavam três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas, e tão limpas das cabeleiras, que de as nós muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha.
Ali por então não houve mais fala nem entendimento com eles, por ser a barbaria deles tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém. Acenamos-lhes [para] que se fossem. Assim o fizeram e passaram-se além do rio.
Saíram três ou quatro homens nossos dos batéis e encheram não sei quantos barris de água, que nós levávamos, e tornamo-nos às naus. Em nós assim vindo, acenaram-nos [para] que tornássemos. Tornamos, e eles mandaram o degredado; não quiseram que [ele] ficasse lá com eles; o qual levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para dá-la ao senhor, se aí o houvesse. Não curaram de lhe tomar nada; e assim o mandaram com tudo. Então, Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar [e] que lhes desse aquilo; ele tornou e, à nossa vista, deu aquilo àquele que da primeira [vez] o agasalhou. Então veio e trouxemô-lo. Este que o agasalhou era já de dias e andava todo por louçainha, cheio de penas pegadas pelo corpo que parecia assetado, como São Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; outros, de [penas] vermelhas; e outros, de verdes.
Uma daquelas moças era toda tinta daquela tintura, de fundo acima, a qual, certo, era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha, que ela não tinha, [era] tão graciosa que a muitas mulheres da nossa terra - vendo-lhe tais feições - faria vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum deles não era fanado, mas todos assim como nós. E com isso nos tornamos, e eles se foram.
À tarde saiu o capitão-mor em seu batel, com todos nós outros e com os outros capitães das naus em seus batéis, a folgar pela baía, diante da praia. Mas ninguém saiu em terra, por o capitão não querer, apesar de ninguém nela estar. Ele somente saiu com todos em um ilhéu grande que está na baía, que na baixa-mar fica mui vazio; porém, de todas as partes é cercado de água, que não pode ninguém ir a ele sem barco ou a nado. Ali folgou ele com todos nós outros bem uma hora e meia; aí pescaram, andando [os] marinheiros com um chinchorro; e mataram pescado miúdo, não muito. Então, volvemo-nos às naus já bem noite.
Ao domingo de Pascoela, pela manhã, o capitão determinou de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães que se corrigissem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esperável e dentro nele alevantar altar mui bem corrigido. E ali, com todos nós outros, fez dizer missa, a qual o padre frei Henrique disse em voz entoada, oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que estavam todos ali; a qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção. Ali estava com o capitão a bandeira de Cristo com que saiu de Belém, a qual esteve sempre alta, à parte do Evangelho.
Acabada a missa, o padre desvestiu-se, pôs-se em uma cadeira alta - nós todos [estávamos] lançados por essa areia - e pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho: no fim dela, tratou de nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da cruz, sob cuja obediência viemos; a qual veio muito a propósito e fez muita devoção.
Enquanto estivemos à missa e à pregação, estaria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como os de ontem, com seus arcos e setas, os quais andavam folgando e nos olhando. E assentaram-se. Depois de acabada a missa - assentados nós à pregação -, alevantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, começaram a saltar e dançar um pedaço. Alguns deles se metiam em almadias - duas ou três que aí tinham, as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três traves atadas juntas - e ali se metiam quatro ou cinco ou aqueles que queriam, não se afastando quase nada da terra senão enquanto podiam tomar pé.
Acabada a pregação, o capitão moveu todos para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos todos para a terra, para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo Bartolomeu Dias com seu esquife adiante, por mandado do capitão, com um pau de uma almadia que o mar lhes levara, para lho dar; nós todos, obra de um tiro de pedra atrás dele. Quando eles viram o esquife de Bartolomeu Dias, todos chegaram-se logo à água, metendo-se nela até onde mais podiam; acenaram-lhes [para] que pusessem os arcos: muitos deles logo os iam pôr em terra, outros não os punham.
Aí andava um que falava muito aos outros [para] que se afastassem, mas, que a mim parecesse, já não lhe tinham acatamento nem medo. Este que assim os andava afastando trazia seu arco e setas, andava tinto de tintura vermelha, pelos peitos, espáduas e pelos quadris, coxas e pernas, até abaixo; e os vazios na barriga e estômago eram de sua própria cor. A tintura era tão vermelha que a água lha não comia nem desfazia; antes, quando saía da água, era mais vermelho.
Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava entre eles, sem [eles] pensarem em fazer-lhe mal. Antes, davam-lhe cabaços de água e acenavam aos do esquife [para] que saíssem em terra. Com isso, volveu-se Bartolomeu Dias ao capitão. E viemos às naus a comer, tangendo trombetas e gaitas, sem lhes dar mais opressão. Eles tornaram-se a assentar na praia e assim, por então, ficaram.
Neste ilhéu, aonde fomos ouvir missa e pregação, a água espraia muito e descobre muita areia e muito cascalho. Em nós aí estando, alguns foram buscar marisco e não o acharam. Acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um camarão muito grande e muito grosso, que em nenhum tempo o vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e de ameijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira.
Logo que comemos, todos os capitães vieram a esta nau, por mandado do capitão-mor, com os quais ele se apartou, e eu na companhia. Perguntou a todos se nos parecia ser bom mandar à Vossa Alteza - pelo navio dos mantimentos - a nova do achamento desta terra, para melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que agora nós podíamos saber, por irmos na nossa viagem [para a Índia]. Entre muitas falas que no caso se fizeram, foi dito por todos, ou a maior parte, que seria muito bom. E todos concluíram nisso. E assim que a conclusão foi tomada, perguntou mais: se seria bom tomar aqui, por força, um par desses homens para os mandar a Vossa Alteza e deixar aqui, por eles, outros dois desses degredados.
Acordaram com isto: que não era necessário tomar por força homens, porque era costume geral dos que assim levavam por força, para alguma parte, dizerem que há aí tudo o que lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens desses degredados que aqui deixassem, do que eles [homens da terra] dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende; nem eles aprenderiam tão cedo a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estroutros não o digam, quando cá Vossa Alteza mandar; e que, portanto, não curassem aqui de tomar ninguém por força, nem fazer escândalo, para mais os amansar e pacificar de todo, senão somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos. E assim ficou determinado, por parecer melhor a todos.
Acabado isso, disse o capitão que fôssemos em terra nos batéis; e ver-se-ia bem que tal era o rio, e também para folgarmos.
Fomos todos em terra nos batéis, armados, e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio aonde nós íamos. Antes que chegássemos, do ensino que dantes tinham, todos puseram os arcos e acenaram [para] que saíssemos.
Assim que os batéis puseram as proas em terra, logo todos passaram além do rio, o qual não é mais ancho que um jogo de mancal. E assim que desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio e foram [ficar] entre eles. Alguns aguardavam, e outros se afastavam; porém, a coisa era de maneira que todos andavam misturados. Eles davam esses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho e por qualquer coisa que lhes davam. Passaram além [do rio] tantos dos nossos e andavam assim misturados com eles que eles se esquivavam e se afastavam e iam-se deles para cima, onde outros estavam. Então, o capitão fez-se tomar ao colo de dois homens, passou o rio e fez tornar todos.
A gente que estava ali não seria mais que aquela que soía [estar]. E logo que o capitão fez tornar todos, alguns deles vieram a ele, não por o conhecerem por senhor, porque me parece que não entendem nem tomavam disso conhecimento, mas porque a nossa gente já passava para aquém do rio. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas, e resgatavam [-nas] por qualquer coisa; em tal maneira que dali trouxeram para as naus muitos arcos, setas e contas.
Então, tornou-se o capitão aquém do rio, e logo acudiram muitos à beira dele. Ali veríeis galantes pintados de preto e vermelho e quartejados assim pelos corpos como pelas pernas, que, certo, pareciam bem assim. Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres moças assim nuas que não pareciam mal, entre as quais andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega toda tinta daquela tintura preta, e o resto todo [era] da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés, e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas que aí não havia nenhuma vergonha. Também andava aí outra mulher moça com um menino ou menina no colo, atado aos peitos com um pano, não sei de quê, que lhe não parecia senão as perninhas; mas as pernas da mãe e o resto não traziam nenhum pano.
Depois, moveu-se o capitão para cima, ao longo do rio, que anda sempre em frente da praia. E ali esperou um velho, que trazia na mão uma  de almadia; falou perante nós todos, estando o capitão com ele - sem nunca ninguém o entender, nem ele a nós -, quantas coisas que o homem lhe perguntava de ouro, que nós desejávamos saber se o havia na terra. Esse velho trazia o beiço tão furado que lhe caberia, pelo furado, um grande dedo polegar; e trazia metido no furado uma pedra verde, ruim, que cerrava por fora aquele buraco. O capitão lha fez tirar, e ele - não sei [por] que diabo - falava e ia com ela para a boca do capitão para lha meter. Estivemos rindo um pouco com isso; então, o capitão enfadou-se e o deixou. Um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não por ela valer alguma coisa, mas por amostra; depois o capitão a houve, creio que para a mandar a Vossa Alteza com as outras coisas.
Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito altas, em que há mui bons palmitos. Colhemos e comemos muitos deles. Então, tornou-se o capitão para baixo, para a boca do rio, onde desembarcamos. Além do rio andavam muitos deles, dançando e folgando, uns ante outros, sem se tomarem pelas mãos; e faziam-no bem. Então, Diogo Dias - almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer - passou-se além do rio; levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita e meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos. Eles folgavam, riam e andavam com ele muito bem, ao som da gaita. Depois de dançarem fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. Conquanto aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza, como monteses. E foram-se para cima.
Então, o capitão passou o rio com todos nós outros. Fomos pela praia, indo os batéis assim em frente da terra. Fomos até uma lagoa grande, de água doce, que está junto com a praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima, e sai a água por muitos lugares. Depois de passarmos o rio, uns sete ou oito deles foram andar entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão que Bartolomeu Dias matou; levou-o e lançou-o na praia.
Basta [dizer] que até aqui - como quer que, em alguma parte, eles se amansassem - logo de uma mão para a outra se esquivavam como pardais de cevadouro. E homem não lhes ousa falar de rijo para não mais se esquivarem. Tudo se passa como eles querem, para os bem amansarem. Ao velho com que o capitão falou [e] deu uma carapuça vermelha - com toda a fala que com ele passou e com a carapuça que lhe deu -, assim que se despediu, que começou a passar o rio, foi-se logo recatando e não quis mais tornar do rio para aquém. Os outros dois que o capitão teve nas naus, a que deu o que já é dito, nunca mais apareceram aqui. De que tiro ser gente bestial e de pouco saber; e por isso são assim esquivos. Eles, porém, andam muito bem curados, muito limpos e naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, que o ar lhes faz melhor pena e melhor cabelo que às [aves ou alimárias] mansas, porque os seus corpos são limpos e tão gordos e tão formosos que não podem mais ser. Isso me faz presumir que não têm casas nem moradas em que se colham; e o ar a que se criam os faz tais; nem nós ainda até agora não vimos nenhumas casas nem maneira delas.
O capitão mandou àquele degredado Afonso Ribeiro que se fosse outra vez com eles; o qual se foi e andou lá um bom pedaço [de tempo]. À tarde, tornou-se, pois eles o fizeram vir e não o quiseram consentir lá. Deram-lhe arcos e setas e não lhe tomaram nenhuma coisa do seu. Antes, disse ele, que um deles lhe tomara umas continhas amarelas que ele levava - e fugia com elas - e ele se queixou; os outros foram logo após ele e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar. Então, mandaram-no vir. Disse ele que não vira, lá entre eles, senão umas choupaninhas de rama verde e de feitos muito grandes como os de Entre Douro e Minho. E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir.
À segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Então, ali vieram muitos, mas não tantos como as outras vezes. Traziam já muito poucos arcos e estiveram assim um pouco afastados de nós. Depois, aos poucos, misturaram-se conosco, abraçavam-nos e folgavam. Alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel, por alguma carapucinha vermelha e por qualquer coisa. De tal maneira se passou a coisa que bem 20 ou 30 pessoas das nossas se foram com eles aonde estavam muitos outros deles com moças e mulheres. Trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, verdes e amarelos, de que, creio, o capitão há-de mandar amostra a Vossa Alteza. Segundo diziam esses que lá foram, folgavam com eles.
Nesse dia os vimos de mais perto e mais à nossa vontade, por andarmos todos quase misturados. Ali [alguns] deles andavam quartejados daquelas pinturas; outros, pela metade; outros, de tanta feição, como em panos de armar; todos com os beiços furados - muitos com os ossos neles, e [alguns] deles sem ossos. Alguns deles traziamouriços verdes de árvores, que na cor queriam parecer de castanheiros, senão que eram bem menores; e aqueles eram cheios de uns grãos vermelhos, pequenos, que, esmagando-os entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, da que eles andavam tintos. Quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.
Todos andam rapados até acima das orelhas, e assim as sobrancelhas e pestanas. Todos trazem as testas - de fonte a fonte - tintas de tintura preta, que parece uma fita preta ancha de dois dedos.
O capitão mandou àquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que fossem andar lá entre eles, e a Diogo Dias, por ser homem ledo com que eles folgavam. Mandou aos degredados que ficassem lá essa noite. Foram-se lá todos e andaram entre eles. Segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação de casas - em que haveria nove ou dez casas - as quais, diziam, que eram tão compridas, cada uma como esta nau capitânea; e eram de madeira e das ilhargas de tábuas, cobertas de palha de razoada altura, todas em uma só casa, sem nenhum repartimento; dentro tinham muitos esteios; e de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos em cada esteio, altas, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. Cada casa tinha duas portas pequenas, uma em um cabo, e outra no outro. Diziam que em cada casa se acolhiam 30 ou 40 pessoas, e que assim os acharam; e que lhes davam de comer daquela vianda que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes que há na terra, que eles comem. Quando foi tarde, fizeram-nos logo todos tornar e não quiseram que nenhum lá ficasse e ainda, segundo eles diziam, queriam vir com eles.
Resgataram lá, por cascavéis e por outras coisinhas de pouco valor que levavam, papagaios vermelhos muito grandes e formosos, dois verdes pequeninos, carapuças de penas verdes e um pano de penas de muitas cores, [à] maneira de tecido assaz formoso, segundo verá Vossa Alteza todas essas coisas, porque o capitão vo-las há-de mandar, segundo ele disse. Com isso, vieram, e nós nos tornamos às naus.
À terça-feira, depois de comer, fomos para terra dar guarda da lenha e lavar roupa. Quando chegamos, estavam na praia obra de 60 ou 70 [nativos] sem arcos e sem nada. Assim que chegamos, vieram logo para nós sem se esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem 200, todos sem arcos; todos misturaram-se tanto conosco que nos ajudavam [alguns] deles a acarretar lenha e meter nos batéis. Lutavam com os nossos e tomavam muito prazer.
Enquanto nós fazíamos a lenha, dois carpinteiros faziam uma grande cruz de um pau que se cortou ontem para isso. Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros; creio que o faziam mais para ver a ferramenta de ferro com que a faziam que por verem a cruz, porque eles não têm coisa que seja de ferro e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas mui bem atadas, e por tal maneira que andam fortes, segundo diziam os homens que ontem [foram] às suas casas, porque as viram lá.
A conversação deles conosco já era tanta que quase nos torvavam o que havíamos de fazer. O capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia - e a outras, se houvesse algumas [aldeias] novas - e que, de toda a maneira, não viessem a dormir às naus, ainda que eles os mandassem. E assim se foram.
Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, alguns papagaios atravessavam por essas árvores, verdes e pardos, grandes e pequenos, de maneira que me parece que haverá nesta terra muitos; porém, eu não veria mais que até nove ou dez. Outras aves, então, não vimos. Somente algumas pombas-seixas; e pareceram-me maiores, em boa quantidade, com as de Portugal. Alguns diziam que viram rolas, mas eu não as vi; mas como os arvoredos são muitíssimos, grandes e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas aves. E cerca da noite, nos volvemos para as naus com nossa lenha. Eu creio, senhor, que aqui ainda não dei conta a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas: os arcos são pretos e compridos; e as setas [são] compridas; os ferros delas [são] de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que, creio, o capitão há-de enviar a Vossa Alteza.
À quarta-feira não fomos para terra porque o capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos, a despejá-lo e [a] fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. Eles acudiram à praia, muitos - segundo vimos das naus - que seriam obra de 300, segundo disse Sancho de Tovar, que lá foi.
Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, a que o capitão ontem mandou que de toda a maneira dormissem lá, volveram-se já de noite por eles não quererem que lá dormissem. Trouxeram papagaios verdes e outras aves pretas, quase como pegas, senão que tinham o bico branco e os rabos curtos. Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau, alguns queriam vir com ele, mas ele não quis senão dois mancebos dispostos e homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e curar. Comeram toda vianda que lhes deram. E mandou-lhes fazer cama de lençóis, segundo ele disse, dormiram e folgaram aquela noite. Assim não foi mais esse dia [do] que seja para escrever.
À quinta-feira, derradeiro[dia] de abril, logo quase pela manhã, comemos e fomos para terra para [colher] mais lenha e água. Querendo o capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes e, por ele não ter ainda comido, puseram-lhe toalhas. Veio-lhe vianda e comeu. Os hóspedes, assentaram-nos em cadeiras; de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente lacão cozido, frio, e arroz. Não lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer que não o bebiam bem.
Acabado o comer, metemo-nos todos no batel, e eles conosco. Um grumete deu a um deles uma armadura grande de porco-montês, bem revolta; assim que a tomou, meteu-a logo no beiço. E porque não lhe queria ter-se, deram-lhe um pouco de cera vermelha; ele corrigiu-lhe detrás [de] seu adereço para ter-se, meteu-a no beiço assim revolta para cima, e vinha tão contente com ela como se tivera uma grande joia. E assim que saímos em terra, foi-se logo com ela, que não apareceu mais aí.
Quando saímos, andariam na praia oito ou dez deles. Daí a pouco começaram a vir, e parece-me que vieram 400 ou 450. Alguns deles traziam arcos e setas; todos os deram por carapuças e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos; alguns deles bebiam vinho e outros não o podiam beber; mas me parece que, se lho avezarem, que o beberão de boa vontade.
Andavam todos tão dispostos e tão bem feitos e galantes com suas tinturas que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha quanto podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos batéis. Andavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós andávamos entre eles. O capitão foi um pedaço com alguns de nós por esse arvoredo até uma ribeira grande e de muita água, que a nosso parecer era essa mesma que vem ter à praia em que nós tomamos água.
Ali houvemos um pedaço [de tempo], bebendo e folgando ao longo dela, entre esse arvoredo que é tanto, tamanho, tão basto e de tantas prumagens que não pode homem dar-se conta. Há entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e bons palmitos. Quando saímos do batel, o capitão disse que seria bom irmos direto à cruz, que estava encostada a uma árvore, junto com o rio, para se pôr [amanhã] de manhã, que é sexta-feira, e que nós puséssemos todos em joelhos e a beijássemos, para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. Assim o fizemos. Esses dez ou doze que aí estavam acenaram-lhes que fizessem assim, e todos foram logo beijá-la.
Parece-me gente de tal inocência que - se algum deles entendesse, e eles [entendessem] a nós - seriam logo cristãos, porque eles não têm nem entendem de nenhuma crença, segundo parece. Portanto, se os degredados que aqui hão-de ficar aprenderem bem sua fala e os entenderem, não duvido, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, fazerem-se cristãos, e crerem na nossa santa fé, à qual praza a nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade, e imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho que lhes quiserem dar. Logo Nosso Senhor deu-lhes bons corpos e bons rostos, como a bons homens; e Ele, que por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa. Portanto, Vossa Alteza - que tanto deseja acrescentar na santa fé católica - deve entender em sua salvação, e prazerá a Deus que com pouco trabalho será assim.
Eles não lavram, nem criam. Nem há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem outra nenhuma alimária que seja costumada ao viver dos homens, nem comem senão desse inhame - que aqui há muito -, e dessa semente e frutos que a terra e as árvores lançam de si. E com isso andam tais, tão rijos e tão nédios que não o somos nós tanto, conquanto comamos trigo e legumes.
Neste dia, enquanto andaram ali, dançaram e bailaram com os nossos sempre ao som de um tamboril nosso, de maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus [amigos]. Se [algum] homem acenava-lhes [para saber] se queriam vir às naus, faziam-se logo prestes para isso de tal maneira que, se alguém quisesse convidar todos, todos viriam. Porém, nessa noite não trouxemos às naus senão quatro ou cinco, a saber: o capitão-mor, dois; Simão de Miranda um, que já trazia por pajem; e Aires Gomes, outro, assim pajem. Dos que o capitão trouxe, um deles era um dos seus hóspedes, que, à primeira [vez], quando aqui chegamos, lhe trouxeram - o qual veio hoje aqui vestido com a sua camisa - e com ele um seu irmão, os quais, nessa noite, foram mui bemagasalhados, assim de vianda, como de cama, de colchões e lençóis, para mais os amansar.
Hoje, que é sexta-feira, 1º dia de maio, saímos pela manhã, para terra com nossa bandeira. Fomos desembarcar acima do rio, para o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a cruz, para ser melhor vista. Ali assinou o capitão [o local] onde fizessem a cova para a chantar. Enquanto a ficaram fazendo, ele, com todos nós outros, fomos abaixo do rio, onde ela estava. Trouxemo-la dali com esses religiosos e sacerdotes adiante, cantando [à] maneira de procissão. Alguns deles já estavam aí, obra de 70 ou 80. Quando nos viram assim vir, alguns deles foram meter-se debaixo dela [para] ajudar-nos. Passamos o rio, ao longo da praia, e fomos pô-la onde havia de ser, que será obra de dois tiros de besta do rio. Andando ali nisso, vieram obra de 150 ou mais.
Chantada a cruz, com as armas e divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe pregaram, armaram [um] altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram a ela conosco obra de 50 ou 60 deles, assentados todos, de joelhos, assim como nós. Quando veio o Evangelho, que nós erguemos, todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, estando assim até ser acabado. Então, tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nós pusemos de joelhos, eles se puseram todos assim como nós estávamos, com as mãos levantadas, e de tal maneira assossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção.
Estiveram conosco até acabada a comunhão. Depois da comunhão [do frei Henrique], comungaram esses religiosos e sacerdotes, o capitão com alguns de nós outros. Em nós estando comungando, alguns deles - por o sol ser grande - alevantaram-se. Outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de 50 ou 55 anos, ficou ali com aqueles que ficaram; este, em nós estando assim, ajuntava aqueles que ali ficaram e ainda chamava outros; este, andando assim entre eles, falando-lhes, acenou com o dedo para o altar e depois mostrou o dedo para o céu, como que lhes dizia alguma coisa de bem. E nós assim o tomamos.
Acabada a missa, o padre tirou a vestimenta de cima e ficou com a alva; assim subiu junto ao altar, em uma cadeira, e ali nos pregou o Evangelho e os apóstolos, cujo dia é hoje, tratando, enfim, da pregação desse vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos causou mais devoção. Esses, que sempre estiveram à pregação, estavam, assim como nós, olhando para ele, e aquele que digo chamava alguns que viessem para ali. Alguns vinham e outros iam-se.
Acabada a pregação, Nicolau Coelho trazia muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda. E houveram por bem que lançassem a cada um a sua [cruz] ao pescoço; pela qual coisa o padre frei Henrique se assentou ao pé da cruz. E ali, a um por um lançava sua [cruz], atada em um fio ao pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar às mãos. Muitos vinham a isso; e lançaram-nas todas [ao pescoço], que seriam obra de 40 ou 50.
Isso acabado, já era bem uma hora depois de meio-dia. Viemos às naus a comer. O capitão trouxe consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o céu; com ele, um seu irmão, ao qual fez muita honra. Deu-lhe uma camisa mourisca; ao outro, uma camisa dessas outras.
Segundo o que pareceu a mim e a todos, outra coisa não falece a essa gente, para ser toda cristã, a não ser nos entenderem, porque, assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos, por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem ande mais devagar entre eles, que todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. Se alguém vier para isso, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais ambos hoje também comungaram.
Entre todos esses que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e à qual deram um pano para que se cobrisse; puseram-lho ao redor dela; porém, ao assentar não fazia memória de estendê-lo muito para cobrir-se. Assim, senhor, a inocência dessa gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto à vergonha. Ora, veja Vossa Alteza: se quem em tal inocência vive - ensinando-lhes o que pertence para sua salvação - se converterá ou não. Acabado isso, fomos, perante eles, beijar a cruz, despedimo-nos e viemos comer.
Creio, senhor, que, com esses dois degredados que aqui ficam, ficam mais dois grumetes, que esta noite saíram desta nau, no esquife, para terra, fugidos, os quais não vieram mais. Cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos nossa partida daqui.
Esta terra, senhor, me parece que - da ponta que vimos, mais para o sul, até a outra ponta que vem do norte, de que nós houvemos vista deste porto - será tamanha que haverá nela bem 20 ou 25 léguas de costa. Traz ao longo do mar, em algumas partes, grandes barreiras, [algumas] delas vermelhas e [algumas] delas brancas. A terra por cima [é] toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia palma, muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, [vista] do mar, muito grande, porque a estender os olhos não podíamos ver senão terra e arvoredos, que nos parecia mui longa terra.
Não pudemos saber até agora que nela haja ouro, nem prata, nem nenhuma coisa de metal, nem de ferro, nem lho vimos. Porém, a terra em si é de muito bons ares, frios e temperados, como os de Entre Douro e Minho, porque, neste tempo de agora, assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas, infindas. E de tal maneira é graciosa que, querendo aproveitá-la, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém, o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que será salvar esta gente. Esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar.
Se não houvesse mais por que ter aqui esta pousada, bastaria para esta navegação de Calicut; quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé.
E desta maneira, senhor, dou aqui a Vossa Alteza [notícia] do que vi nesta terra. E, se a algum pouco alonguei, ela me perdoe, porque o desejo que tinha de vos dizer tudo mo fez assim pôr pelo miúdo. E pois que, senhor, é certo que assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há-de ser mui bem servida de mim. A Vossa Alteza peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé Jorge do Soiro, meu genro, o que receberei como muita mercê de Vossa Alteza.
Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto Seguro, da vossa Ilha da Vera Cruz, hoje, sexta-feira, 1º dia de maio de 1500.
Pero Vaz de Caminha
Notas de Janaína Amado e Luiz Carlos Figueiredo. In: AMADO, Janaína e FIGUEIREDO, Luiz Carlos.Brasil 1500: quarenta documentos. Brasília: UnB, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001, pp. 73 a 117.

DOENÇA DA NAÇÃO



Os bons textos e as análises aguçadas merecem ser lidas. Por esta razão, trago o escrito de Paulo Brossard sobre essa furuncolose que devasta o sistema orgânico nacional há 10 anos. No caso da análise, ele se refere apenas a alguns deles, porém característicos da situação.
Benhur
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Furúnculos
por Paulo Brossard, ex-Ministro da Justiça e ex-Ministro do STF

Como o Supremo Tribunal Federal, após quatro meses de trabalhos exaustivos, condenou e absolveu acusados, vem de concluir o julgamento da ação penal 470, seria o momento para algumas observações acerca de um processo criminal sem precedentes na história da nação. Ocorre que quase ao mesmo tempo sucedeu episódio também sem paralelo na crônica nacional. Exatamente alguns condenados criminalmente juntaram-se em bando com o fito de desqualificar o Tribunal que os condenara com a particularidade de tratar-se da mais alta Corte judiciária do país. As decisões judiciárias podem ser censuráveis uma vez que nenhum Tribunal é infalível pela simples razão de que seus integrantes também não são; aliás, em princípio a crítica é útil, sob uma condição prévia, a de que o crítico tenha autoridade intelectual para fazê-lo, sem falar em outras e no caso em tela não se trata de crítica, mas de agravos e agravos pesados. Dir-se-ia um bando de “aloprados”, para repetir a expressão usada pelo ex-presidente Luiz Inácio para situação semelhante. O particularmente grave, no caso, é que o próprio ex-presidente tem se manifestado na linha dos “aloprados” nas afrontas ao judiciário. Decretando que o “mensalão” nunca existiu, dessa premissa inverídica passa a asseverar ser uma “farsa”. Isso depois que o Supremo Tribunal Federal, ao cabo de 53 sessões públicas, assistidas por milhares de brasileiros, condenou 25 denunciados e absolveu 12. Nunca houve processo criminal tão numeroso e complexo e nenhum que tenha recebido tamanha publicidade, e o ex-presidente pura e simplesmente nega a existência do “mensalão”. Um perjuro não faria melhor. É lamentável, mas especialmente é triste. 

Prefiro abster-me de qualificá-lo devidamente. Contudo, não é tudo, praticamente ao mesmo tempo, outro escândalo veio à tona, chamuscando o ex-presidente. Não preciso entrar em pormenores, nem aludir a intimidade conhecida, basta dizer que agora o cenário era o gabinete da Presidência da República em São Paulo, cuja chefe vinha do octonato passado e continuou sob o governo atual, a rogo do ex-presidente, salienta-se. Os fatos apurados pela Polícia Federal eram de tal natureza que a personagem em causa, entre outras, foi afastada ou demitida. Concluída a investigação policial, remetido o processo ao Ministério Público este ofereceu denúncia com base em quatro delitos e a denúncia recebida. Não é necessário dizer mais, mas para que se veja a olho nú a gravidade dos fatos que envolvem este caso basta dizer que até o comércio de pareceres sob encomenda era especialidade da casa.

Embora os escândalos sejam diferenciados eles se interligam. Faz lembrar uma furunculose de escândalos.

Para não sair do capítulo dos escândalos, parece-me imperioso mencionar o que se passa no mundo parlamentar com a CPI do Cachoeira. Ao cabo de oito meses de trabalho, fartamente noticiadas as revelações ocorrentes, tendo como centro uma grande empreiteira e várias pessoas, na hora de concluir, ficou o dito por não dito. A despeito do que fora apurado e publicado, o resultado fixou em zero a zero. Nada de nada, a não ser o encerramento da investigação. Pessoa experiente resumiu o caso de maneira breve e clara, dizendo apenas que os autores desse passe de mágica podiam ser artistas de muitos talentos, mas “não podiam ser deputados”. Nada mais.

MEDICINA INAPTA


Senti-me na obrigação de compartilhar o texto de autoria de Miguel Srougi, no jornal Folha de São Paulo, de 06/01/2012. É necessário que vozes sábias do meio médico sejam ouvidas, numa tentativa de ativar a lucidez governamental, se isto for possível, e institucional da medicina, se houver coragem para tanto, no sentido de, primeiro, desconcentrar regionalmente a formação e a localização de médicos e, em segundo lugar, de tornar os estudantes de ontem, em médicos verdadeiramente capazes hoje. Para salientar parte do texto de Miguel, quando ele cita personagem de Guimarães Rosa: "um sentir é o do sentente, mas o outro é o do sentidor". Utilizando a linguagem do futebol, é necessário aperfeiçoar essa atividade de meio-de-campo.




Médicos inaptos: algozes ou vítimas?
MIGUEL SROUGI
Mais importante do que abrir faculdades é aumentar as vagas para residência. Novos médicos são vítimas de um enredo perverso
Os últimos dias não foram de felicidade para os brasileiros. Entre outros motivos, descobriram que 54,5% dos médicos recém-formados da nação são inaptos para a profissão.
Não fiquei surpreso com o número e com a indignação. Afinal, lideranças e educadores médicos já conheciam a indecência e, impotentes, nunca conseguiram eliminá-la. Sem tergiversar, julgo que profissionais inaptos devem ser impedidos de exercer a profissão e que uma legislação impondo um exame de capacitação dos novos médicos já deveria ter sido promulgada.
Contudo, não posso deixar de expressar certa angústia quando dirijo um olhar a esse grupo. Confesso que nunca me deparei com um médico recém-formado que não acalentasse o sonho de se tornar um profissional respeitado. Se isso não se concretiza, suspeito que outras razões produzem o descompasso. Entre elas, a mistura de uma sociedade complacente e governantes incompetentes.
Como ignorar a influência negativa da sociedade, que se rejubila com a abertura de novas escolas médicas, iludida pela ideia de que estão sendo criadas maioresoportunidades para seus jovens? Cedendo a esses apelos e à pressão de empresários oportunistas, o governo federal autorizou, entre 2000 e 2012, a abertura de 98 novas faculdades, perfazendo um total de 198 escolas no país; nos Estados Unidos, habitado por 314,3 milhões de pessoas, existem 137 instituições similares.
Numa nação de dimensões continentais e insuportável desigualdade, seria racional que as novas escolas médicas fossem acomodadas em regiões remotas do Brasil. Contudo, 70% delas foram instaladas na região sudeste, rica e congestionada, e 74% são de natureza privada, cobrando taxas exorbitantes de alunos.
Contrariando as leis vigentes, a maioria desses centros não dispõe de instalações hospitalares adaptadas para o ensino e carecem de corpo docente qualificado. Isso indica que o processo foi norteado por interesses políticos menores e pelo anseio do lucro desmedido e predador.
Agravando esse cenário, autoridades federais têm dado demonstrações adicionais de inconsequência e de tolerância suspeita. Uma comissão especial do MEC presidida pelo professor Adib Jatene descredenciou, há um ano, algumas escolas médicas, pela baixa qualidade de ensino. De forma misteriosa e inexplicável, a Comissão Nacional de Educação cancelou, em fevereiro passado, a ação corretiva adotada. Resolução nefasta para a sociedade brasileira e auspiciosa para os mesmos predadores da nação.
Nossa presidente anunciou sua disposição de abrir mais 4.500 vagas para alunos de medicina (algo como 55 novas escolas). Num momento em que as universidade federais se encontram em estado de penúria, essa meta torna-se um devaneio descompassado com a realidade da nação.
Mais importante do que criar novas faculdades seria aumentar as vagas para residência médica. Cerca de 6.000 novos médicos formados a cada ano não dispõem de locais para realizar a residência, a etapa mais relevante para a formação de profissionais qualificados.
Outra proposta governamental, tão cândida quando descabida, é autorizar o trabalho em nosso país de médicos patrícios formados no exterior, sem exames de proficiência. Se 54,5% de médicos recém-formados inaptos causam indignação, como reagir ao fato de que em 2011, num exame oficial de revalidação de diplomas de 677 médicos graduados no exterior, 90,5% deles foram considerados inaptos?
Termino referindo-me a uma realidade que Riobaldo, o jagunço-filósofo de Guimarães Rosa, soube muito bem descortinar. "Um sentir é o do sentente, mas o outro é do sentidor." Reconheço que as inquietações expressas sobre as aptidões dos recém-formados são justificadas por quem sente de fora. Mas como um dos que sentem de dentro, não posso deixar de dizer que, ao invés de algozes, a imensa maioria dos novos médicos da nação são vítimas de um enredo perverso que mistura uma sociedade permissiva, escolas médicas deficientes e governantes incapazes. Que transformam esperanças incontidas em sonhos frustrados.
MIGUEL SROUGI, 66, pós-graduado em urologia pela Universidade de Harvard (EUA), é professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP e presidente do conselho do Instituto Criança é Vida

O QUARTO PODER CRIMINOSO

  _____________________________________________________________ A Imprensa, dita quarto poder, cria uma realidade virtual que não correspond...