O MAL COM BASE NA MENTIRA

O artigo de Ferreira Gullar, escrito para o jornal Folha de São Paulo, deste domingo, expõe o lamaçal sobre o qual se constrói a retórica petista. Não importam os princípios democráticos, nem os republicanos, nem os da decência pessoal e social e, muito menos, os da ética e da moral. Para obter, ou, agora, para manter-se no Poder, tudo vale. Então, no caso, a mentira é a forma de combater fatos e verdades, repetindo-as tantas vezes quantas a memória das pessoas exigir para que se consolidem como realidades. Aliás, depois tentam desqualificar comentários e seus autores, que  indicam estar o petismo a resgatar métodos que a História quer esquecer.
Vela pena ler.


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A mentira como método (por Ferreira Gullar)
Eles sabem que estão mentindo e, sem qualquer respeito próprio, repetem a mentira por décadas
Tenho com frequência criticado o governo do PT, particularmente o que Lula fez, faz e o que afirma, bem como o desempenho da presidente Dilma, seja como governante, seja agora como candidata à reeleição.
Esclareço que não o faço movido por impulso emocional e, sim, na medida do possível, a partir de uma avaliação objetiva.
Por isso mesmo, não posso evitar de comentar a maneira como conduzem a campanha eleitoral à Presidência da República. Se é verdade que os candidatos petistas nunca se caracterizaram por um comportamento aceitável nas campanhas eleitorais, tenho de admitir que, na campanha atual, a falta de escrúpulos ultrapassou os limites.
Lembro-me, como tanta gente lembrará também, da falta de compromisso com a verdade que tem caracterizado as campanhas eleitorais do PT, particularmente para a Presidência da República.
Nesse particular, a Petrobras tem sido o trunfo de que o PT lança mão para apresentar-se como defensor dos interesses nacionais e seus adversários como traidores desses interesses. Como conseguir que esse truque dê resultado?
Mentindo, claro, inventando que o candidato adversário tem por objetivo privatizar a Petrobras. Por exemplo, Fernando Henrique, candidato em 1994, foi objeto dessa calúnia, sem que nunca tenha dito nada que justificasse tal acusação.
Em 2006, quem disputou com Lula foi Geraldo Alckmin e a mesma mentira foi usada contra ele. Na eleição seguinte, quando a candidata era Dilma Rousseff, essa farsa se repetiu: ela, se eleita, defenderia a Petrobras, enquanto José Serra, se ganhasse a eleição, acabaria com a empresa.
É realmente inacreditável. Eles sabem que estão mentindo e, sem qualquer respeito próprio, repetem a mesma mentira. Mas não só os dirigentes e o candidato sabem que estão caluniando o adversário, muitos eleitores também o sabem, mas se deixam enganar. Por isso, tendo a crer que a mentira é uma qualidade inerente ao lulopetismo.
Quando foi introduzido, pelo governo do PSDB, o remédio genérico --vendido por menos da metade do preço do mercado-- o PT espalhou a mentira de que aquilo não era remédio de verdade. E os eleitores petistas acreditaram: preferiram pagar o triplo pelo mesmo remédio para seguir fielmente a mentira petista.
Pois é, na atual campanha, não apenas a mesma falta de escrúpulo orienta a propaganda de Dilma, como, por incrível que pareça, conseguem superar a desfaçatez das campanhas anteriores.
Mas essa exacerbação da mentira tem uma explicação: é que, desta vez, a derrota do lulopetismo é uma possibilidade tangível.
Faltando pouco para o dia da votação, Marina tem menos rejeição que Dilma e está empatada com ela no segundo turno --e o segundo turno, ao que tudo indica, é inevitável.
Assim foi que, quando Aécio parecia ameaçar a vitória da Dilma, era ele quem ia privatizar a Petrobras e acabar com o Bolsa Família.
Agora, como quem a ameaça é Marina, esta passou a ser acusada da mesma coisa: quer privatizar a Petrobras, abandonar a exploração do pré-sal e acabar com os programas assistenciais. Logo Marina, que passou fome na infância.
E não é que o Lula veio para o Rio e aqui montou uma manifestação em defesa da Petrobras e do pré-sal? Não dá para acreditar: o cara inventa a mentira e promove uma manifestação contra a mentira que ele mesmo inventou! Mas desta vez ele exagerou na farsa e a tal manifestação pifou.
Confesso que não sei qual a farsa maior, se essa, do Lula, ou a de Dilma quando afirmou que, se ela perder a eleição, a corrupção voltará ao governo. Parece piada, não parece? De mensalão em mensalão os governos petistas tornaram-se exemplo de corrupção, a tal ponto que altos dirigentes do partido foram parar na cadeia, condenados por decisão do Supremo Tribunal Federal.
Agora são os escândalos da Petrobras, saqueada por eles e por seus sócios na falcatrua: a compra da refinaria de Pasadena por valor absurdo, a fortuna despendida na refinaria de Pernambuco, as propinas divididas entre o PT e os partidos aliados, conforme a denúncia feita por Paulo Roberto Costa, à Justiça do Paraná.
Foi o Lula que declarou que não se deve dizer o que pensa, mas o que o eleitor quer ouvir. Ou seja, o certo é mentir.


DESVARIO PERMANENTE

Vale a pena, muito a pena!, ler o depoimento abaixo, da filha de Jorge Amado. Fora do tempo, é verdade!, mas ainda contemporâneo, por representar a contemporaneidade dos desvarios de um político que ainda nos representa.

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Odeio Prepotência
Era 1998, estávamos em Paris, papai já bem doente, participara da Feira do Livro de Paris e recebera o doutoramento na Sorbonne, o que o deixou muito feliz. De repente, uma imensa crise de saúde se abateu sobre ele, foram muitas noites sem dormir, só mamãe e eu com ele. Uma pequena melhora e fomos tomar o avião da Varig (que saudades) para Salvador.
Mamãe juntou tudo que mais gostavam no apartamento onde não mais voltaria e colocou em malas. Empurrando a cadeira de rodas de papai, ela o levou para uma sala reservada. E eu, com dois carrinhos, somando mais de 10 malas, entrava na fila da primeira classe. Em seguida chegou um casal que eu logo reconheci, era um politico do Sul (não lembro se na época era senador ou governador, já foi tantas vezes os dois, que fica difícil lembrar). A mulher parecia uma arvore de Natal, cheia de saltos, cordões de ouros e berloques (Calá, com sua graça, diria: o jegue da festa do Bonfim). É claro que eu estava de jeans e tênis, absolutamente exausta. De repente, a senhora bate no meu ombro e diz: Moça, esta fila é da primeira classe, a de turistas é aquela ao fundo. Me armei de paciência e respondi: Sim, senhora, eu sei. Queria ter dito que eu pagara minha passagem enquanto a dela o povo pagara, mas não disse. Ficou por isso. De repente, o senhor disse à mulher, bem alto para que eu escutasse: até parece que vai de mudança, como os retirantes nordestinos. Eu só sorri. Terminei o check in e fui encontrar meus pais.
Pouco depois bateram à porta, era o casal querendo cumprimentar o escritor. Não mandei a putaquepariu, apesar de desejar fazê-lo, educadamente disse não. Hoje, quando vi na TV o senador dizendo que foi agredido por um repórter, por isso tomou seu gravador, apagou seu chip, eteceteraetal, fiquei muito retada, me deu uma crise de mariasampaismo e resolvi contar este triste episódio pelo qual passei. Só eu e o gerente da Varig fomos testemunhas deste episódio, meus pais nunca souberam de nada…
Paloma Jorge Amado é psicóloga.
Define a sua preferência política desta forma. “Sou livre pensadora. Odeio tudo que é contra o povo, reacionário, retrógrado, preconceituoso. Se tivesse que escolher uma ala, escolheria a das Baianas.”

VISÃO DISTORCIDA INTENCIONALMENTE

Esse, embora espirituoso na sua escrita e, por isso mesmo, agradável de ler em alguns momentos, é um péssimo estrategista das ideias políticas e sociais. Sempre que escreve sobre isto, erra, pois deixa exposto seu fel contra o desenvolvimento da cidadania e da nacionalidade brasileiras. Agora, por exemplo, procura desqualificar uma candidata, colocando no palco argumentos vãos, mas que servem para a plebe ignara que o lê, consolidar a visão distorcida, que sempre prejudica uma campanha eleitoral pensada de nível construtivo.

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Marina
(Luiz Fernando Veríssimo, para O Globo))
Não se imagina que Malafaia e outros bispos evangélicos teriam o mesmo poder no governo que tiveram sobre a redação dos princípios da candidata
A comparação da Marina com o Jânio e o Collor é gratuita, mas, se ela for eleita, entrará na lista dos nossos presidentes exóticos — o que não significa que terá o mesmo destino dos outros. Mulher, negra, com uma história pessoal de superação da sua origem mais admirável até do que a do Lula, ela seria, no governo, no mínimo uma curiosidade internacional, e talvez uma surpresa. Acho difícil que sobreviva a todas as suas contradições e chegue lá, mas no Brasil, decididamente, você nunca pode dizer que já viu tudo. Temos uma certa volúpia pelo excêntrico.
A influencia da religião numa hipotética administração Marina é discutível. Não se imagina que o bispo Malafaia e outros bispos evangélicos teriam o mesmo poder no governo que tiveram sobre a redação dos princípios da candidata, obrigada a mudar alguns para não desagradá-los. E o que significaria termos um governo evangélico em vez de um governo católico ou umbandista? Obscurantismo por obscurantismo, daria no mesmo. Outra excentricidade do momento — sob a rubrica “Só no Brasil” — é o fato de a candidata mais revolucionária nestas eleições ser ao mesmo tempo a mais conservadora.
A aprovação quase universal do casamento gay está tornando esta questão obsoleta, para não dizer aborrecida, mas outras questões em choque com princípios religiosos, como a da liberação do aborto e a pesquisa com células-tronco, afetam a vida e a morte de milhões de pessoas. É impossível saber quantas mulheres já morreram em abortos clandestinos por culpa direta da proibição do uso de preservativos pelo Vaticano, por exemplo.
Não faz a menor diferença para mim, para você e para o nosso cotidiano se Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo porque nem Ele era de ferro, ou se a humanidade descende de macacos. Eu mesmo adotei uma crença mista a respeito: acredito que todos os antepassados da nossa espécie eram filhos de macacos menos os meus, que foram adotados. Mas a oposição à pesquisa com células-tronco que pode levar à cura de varias doenças hoje mortais não é brincadeira. É criminosa.
Acho a Marina uma mulher extraordinária. Mas, como alguém que está na fila para receber os eventuais benefícios de pesquisas com células-tronco, voto no meu coração.

MEDO

Amplifico o texto abaixo, escrito para o jornal Folha de São Paulo, de 03/04/2014, por vê-lo contextualizado no sentimento da sociedade brasileira. Daudt, que é psicanalista e escreve somente sobre isto, desta vez ousou migrar para o tema político, embora o psicossocial abordado seja forte. 
Bom texto, que merece leitura.
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Medo (FRANCISCO DAUDT)

Quando alguém está no poder e ameaça fazer o diabo para mantê-lo, é inevitável que cause medo
Estresse é algo mal compreendido. Significa angústia prolongada. Angústia é um aperto no peito que o medo dá. Portanto, estresse é a condição de medo prolongado.
Temos medo de várias coisas: da ameaça física (violência humana, ataque animal etc.); do que nos leva a conter a raiva; da sifudência imaginada (ir à falência, ficar velho pobre e desamparado etc.); do que nos provoca culpa; e da ameaça de perda do amor de pessoas queridas.
Depressão é o resultado disso, uma defesa por encolhimento. Sugiro um vídeo no YouTube a respeito: "Eu tinha um cachorro preto". Feito pela OMS, ajuda o deprimido e seus próximos a levá-la a sério.
Medo. Minha irmã disse que tinha medo de pôr um adesivo no carro, declarando seu voto. Medo de que seu carro fosse depredado.
Lembrei-me de uma entrevista na TV há alguns anos com o chefe da não quadrilha do não mensalão, hoje semiencarcerado (injustamente, claro, por causa "daquele complexado").
Tive medo quando ele insinuou que apenas seu partido poderia conter a fúria dos "movimentos sociais", em caso de ameaça à estrutura de poder que seu partido havia montado, e que se pretende eterna.
Juntou-se a isso a promessa da candidata de que "em eleição se faz o diabo" para vencer.
A que "diabo" ela se referiria? Há várias possibilidades, desde a mais branda, como bloquear a grande imprensa de fazer perguntas em entrevistas coletivas, dando prioridade a blogueiros chapa-branca e levando jornalistas sérios a sortearem entre si as poucas perguntas que sobram.
Até mais graves, como arregimentar milícias de internautas para denegrir "inimigos", já com "aloprados" agindo dentro do Palácio.
Fato é que, quando alguém está no poder e ameaça fazer o diabo para mantê-lo, é inevitável que isso nos provoque medo.
Eu mesmo, que escrevo apenas para leitores deste jornal (mas sou da elite branca, parte dos "pessimistas" que vaiaram Madame) e, portanto, não sou grande ameaça, nenhum Celso Daniel, pois então, já ouvi me perguntarem se eu não tinha medo.
Claro que tenho. Movimentos sociais atiçados, internautas dedicados "à causa" que caluniam (Voltaire: "Minta, minta, sempre sobrará alguma coisa") buscando derrubar reputações --mesmo estando longe de ser uma Miriam, Sardenberg ou Merval-- ainda assim causam medo.
Levando em conta os modelos bolivarianos, de milícias que aterrorizam adversários, seguindo o exemplo das de Hitler, que o ajudaram a ser "chanceler com poderes especiais".
Levando em conta que ter "poderes especiais" com aparência democrática (Lula disse que "na Venezuela há democracia até demais") é tudo o que aspirantes a tirano buscam, sim, tenho medo por mim.
Mas tenho mais medo pelo meu país.
É curioso que a ditadura militar tenha se parecido tanto com o modelo bolivariano a que essa gente aspira: tirania, controle da mídia, perseguições aos inimigos e, sobretudo, economia estatizada. Páreo duro com o Geisel no desejo estatizante.
Não pensem que bato em cachorro morto. Ele está vivo. Quieto. À espreita...

EXCESSOS

Isso mesmo!, EXCESSOS. No que pensam esses políticos suecos ao manter uma vida tão despojada? É uma vergonha ...  para nós, brasileiros, plenos de diferenças e de carências socioeconômicas, ao mantermos uma elite, suja, sim, mas elite que legisla em causa própria e faz a lista dos seus benefícios imorais como quer. Pior do isto, aufere recursos criminosos que, depois, faltam à população e causam mortes pela ausência de infraestrutura (saudade da velha e boa infra-estrutura) à saúde, à segurança, aos meios de transporte, e à educação, pois na falta dela tornamo-nos o que interessa à essa "elite" nefasta que é a incapacidade bovina  de reclamar e de tomar iniciativa.


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Como Vivem os Políticos na Suécia: um Trecho Revelador de um Novo Livro




Claudia Wallin, jornalista brasileira radicada na Suécia, acaba de lançar um livro sobre os políticos suecos – “Um País Sem Excelências e Mordomias” (Geração Editorial). Abaixo, um trecho que retrata, em detalhes, a cultura escandinava.

”É preciso aceitar os sacrifícios que se avizinham”, murmura para si próprio um sueco no momento revelador em que a sua real vocação para a carreira política se manifesta como um desejo irrefreável. ”Serão abomináveis os desafios”, alerta um forasteiro: os cintos apertados como os da amorfa massa do povo, a ausência de alegres comitivas de inúteis, os apartamentos funcionais que lembram quartos de hotéis de duas estrelas, a falta que hão de fazer os batalhões de assessores e parasitas. Quando tal provação parecer insuportável, será prudente invocar Mímir, o deus venerado pelos vikings por sua sabedoria infinita e pela cabeça que, mesmo decepada pelos inimigos, continua a pensar.

Suécia não oferece luxo aos seus políticos: nesta sociedade essencialmente igualitária, a classe política não tem o status de uma elite bajulada e nem os privilégios de uma nobreza encastelada no poder. Sem direito a imunidade, políticos suecos podem ser processados e condenados como qualquer cidadão. Sem carros oficiais e motoristas particulares, deputados se acotovelam em ônibus e trens, como a maioria dos cidadãos que representam.

Sem salários vitalícios, não ganham a merecida aposentadoria após alguns poucos anos de trabalho pelo bem do povo. Sem secretária particular na porta, banheiro privativo ou copa com cafezinho, os gabinetes parlamentares são espartanos e diminutos como a sala de um funcionário de repartição pública. Sem verbas indenizatórias para alugar escritório nas bases eleitorais, deputados suecos usam a própria casa, a sede local do partido ou a biblioteca pública para trabalhar quando estão em suas regiões de origem.

”Está bom, mas pode ficar melhor”, resmunga o motorista de táxi que me leva do aeroporto de Arlanda ao centro de Estocolmo, a capital sueca. Ele reclama indignado, como tantos outros, do valor do salário líquido de um deputado do Parlamento sueco: horror dos horrores, é cerca de 50 por cento a mais do que ganha em média um professor primário no país. Um privilégio indefensável, que na lógica do motorista deveria estar em processo acelerado de extinção. Não é preciso consultar a cabeça de Mímir para deduzir que este é um povo que sabe quem é o patrão.

”Sou eu que pago os políticos”, resumiu o cidadão sueco Joakim Holm, durante entrevista gravada em uma rua de Estocolmo para reportagem do Jornal da Band. ”Não vejo razão alguma para dar a eles uma vida de luxo”.

”Os políticos são eleitos para trabalhar para mim e para todos os outros cidadãos que pagam impostos. Aqui ninguém acha que os políticos são uma classe superior com direito a privilégios”, disse outro entrevistado, Mikael Forslund.

A nível municipal, o desejo de exercer a atividade política poderia ser mal interpretado, fora da Suécia, como um caso clínico: vereadores suecos não ganham sequer salários, e também não têm direito a gabinete – trabalham de casa. Estarão os seus nervos em desordem?
O que o modelo sueco demonstra é que as camisas de força se ajustariam melhor ao figurino das platéias entorpecidas de outras latitudes, que assistem, bovinizadas, ao fascinante espetáculo diário dos abusos do poder. A experiência da Suécia subverte o desconexo conceito de que aos políticos deve-se dispensar um tratamento reverencial digno de uma casta superior, formada por cavalheiros e damas mais ilustres do que a média, e portanto com direitos quase divinos a benesses jamais alcançáveis pelos cidadãos que vivem sob o Olimpo político.

Ainda lembro da estranha sensação de estar presenciando um fenônemo extraterreno quando encontrei, pela primeira vez, o ex-primeiro-ministro e atual ministro das Relações Exteriores, Carl Bildt, empurrando seu carrinho de compras no supermercado que frequento em Estocolmo. E o prefeito de Estocolmo, Sten Nordin, na fila do ônibus. E o presidente do Parlamento, Per Westerberg, em um vagão do metrô.

Sem desesquilíbrios sociais monstruosos, este é sem dúvida um país mais seguro e menos violento, onde provavelmente os únicos carros blindados que circulam pelas ruas são guiados pelas forças de segurança. Mas mais que isso, esta é uma sociedade que elege políticos mais próximos da realidade e das dores do cidadão comum. Políticos que em geral não colocam a vaidade ou os interesses próprios na frente dos bois, em uma sociedade que mostra que o exercício da função política pode ser digno.

”Na Suécia, os políticos vivem uma vida simples, em condições semelhantes às que vivem os cidadãos. É uma tradição”, diz o jornalista Mats Knutson, apresentador e comentarista político da TV pública SVT.

Na década de 70, o então primeiro-ministro Olof Palme morava em sua própria casa no subúrbio de Vällinby, e costumava dirigir para a sede do Governo em um velho Fiat vermelho.

”Era um Fiat 600, fabricado na antiga Alemanha Oriental”, conta Mårten Palme, filho de Olof Palme e professor de Economia da Universidade de Estocolmo. ”Meu pai prezava a igualdade e a simplicidade, e vivíamos uma vida normal. Nossa casa de verão na ilha de Fårö era bastante primitiva, e não havia sequer água ou eletricidade”, ele me diz.

O antecessor de Palme, Tage Erlander, tomava o bonde para a sede do Governo. Ou ia de carona com a mulher, que trabalhava perto dali.

Os suecos só decidiram criar uma residência oficial para o primeiro-ministro depois de 1986, quando Olof Palme foi assassinado a tiros na saída do cinema quando caminhava para casa sem escolta, em um crime brutal e nunca solucionado. Seu sucessor, o também social-democrata Ingvar Carlsson, mudou-se aparentemente contrariado para a nova residência oficial. Diz-se que Carlsson, que renunciaria ao poder tempos depois, achava inapropriado para um primeiro-ministro sueco morar num lugar chamado de Palácio – ao construir a casa em 1884, a abastada família Sager a batizara de Palácio Sagerska.

Turistas menos atentos pisam, sem se dar conta, a um metro da porta de entrada da casa do primeiro-ministro sueco. Sem portões externos, a residência oficial de Sagerska está situada na Strömgatan, a rua de pedestres que margeia o Mar Báltico e o lago Mälaren nas proximidades do Parlamento. Com uma área de 305 metros quadrados, os aposentos privados do premier ocupam o andar superior da residência de 1,195 metros quadrados, vigiada do lado de fora por duas câmeras disfarçadas e pela presença ocasional de um Volvo das forças de segurança suecas.

Sagerska é uma bela mansão. Mas não há serviçais no apartamento do primeiro-ministro sueco, Fredrik Reinfeldt.

”A limpeza dos aposentos privados do primeiro-ministro é feita uma vez por semana. Por este serviço, o primeiro-ministro deve pagar impostos em sua declaração de renda”, diz Anna Dahlén, assessora de imprensa do governo sueco.

Sem provocar reações de espanto sobrenatural entre a população, Fredrik Reinfeldt fala com naturalidade que lava, passa e cozinha como a maioria dos cidadãos deste país. ”E por que ele não faria isso, se todos nós fazemos?”, ouço de vários suecos.

Há quem vá sentir o cheiro acre da demogagia populista ao saber que na Suécia o primeiro-ministro dá dicas de limpeza em reportagens de jornal, e aconselha seus concidadãos a ajoelhar para raspar a sujeira. Mas a verdade é que cuidar das tarefas domésticas por aqui é tão natural como beber snaps, o destilado consumido em quantidades imoderadas no país.
Na Suécia, como em tantos outros países do mundo, a instituição da empregada doméstica não existe. Entre os suecos mais radicais, o zelo pela igualdade e o medo do ressurgimento de uma subclasse social chega a provocar reações exaltadas. Em um debate da campanha eleitoral de 2006, flechas voaram contra a então líder do Partido de Centro (Centerpartiet), Maud Olofsson, quando ela defendeu a introdução de abatimentos fiscais para permitir aos suecos contratar faxineiras e aliviar assim sua dupla jornada.

”E quem limpa o banheiro da empregada?”, perguntou, irritado, o intermediador do debate na TV4, Göran Rosenberg.

”E quem pinta a casa do pintor?”, retrucou Maud. ”A faxineira também pode contratar ajuda quando precisar”, argumentou ela.

A inesperada proposta de Maud também foi atacada pelo primeiro-ministro da época, o social-democrata Göran Persson.

”Cada pessoa deve cuidar das próprias tarefas domésticas, é o que eu digo”, falou o primeiro-ministro.

Persson disse mais: contou, com orgulho indisfarçável, que era capaz de passar sua camisa social em um minuto. Foi, então, rapidamente convidado para provar a façanha ao vivo no estúdio de um programa de TV, onde foi montada uma tábua de passar roupa. O feito, devidamente cronometrado pelo apresentador do programa, pode ser visto no Youtube .

As peripécias com o ferro renderam picos de audiência ao primeiro-ministro. Mas naquele ano, depois de dez anos no poder, Persson perdeu as eleições. Maud tornou-se vice-primeira-ministra, e muitos suecos passaram a ter a ajuda ocasional de faxineiras, em sua maioria imigrantes polonesas. Praticamente todos continuam no entanto a lavar, cozinhar e passar, como Göran Persson.

Ministros também vivem sem luxo: eleito pelo jornal britânico Financial Times como o melhor ministro das Finanças da Europa em 2011, o sueco Anders Borg mora em Estocolmo durante a semana, segundo confirma seu porta-voz, em um apartamento funcional conjugado de cerca de 25 metros quadrados.

”Políticos suecos são despretensiosos”, comenta o porta-voz de Borg, Peter Larsson.
O apartamento de um só cômodo do ministro das Finanças, segundo o porta-voz, fica em um edifício que serve de acomodação para estudantes da Escola Superior de Guerra sueca (Försvarshögskolan). No prédio vivem ainda alguns funcionários do Ministério sueco das Relações Exteriores. Nos finais de semana, Borg vive com a família em sua casa na região de Katrineholm, ao sul de Estocolmo.

Nem ministros, nem prefeitos e nem o presidente do Parlamento têm direito a residência oficial. Apenas políticos com base eleitoral fora da capital recebem auxílio-moradia para viver em apartamentos ou mesmo quitinetes funcionais, que têm em média 18 metros quadrados.
Parece pouco para criaturas tão excelsas, mas está melhor do que nunca: até o fim dos anos 80, apartamentos funcionais sequer existiam na Suécia. Todos os parlamentares dormiam em sofás-cama, em seus próprios gabinetes. Hoje, todos têm um apartamento garantido. E esta garantia é, para muitos suecos que disputam um imóvel no centro da capital, uma mordomia inexplicável.

”Por que os deputados não precisam entrar na fila das imobiliárias para conseguir um apartamento, como todos nós?”, diz uma funcionária da creche que funciona dentro do Parlamento. Sim, há uma creche no Parlamento para cuidar de filhos de deputados.
O apartamento funcional pode ser um direito garantido. Mas a cama, não. Em grande parte dos imóveis parlamantares, onde um único cômodo serve como sala e quarto de dormir, há apenas um sofá-cama.

Qual é a origem da frugal existência dos políticos suecos? Vou ao encontro da jornalista Lena Mehlin na sede do jornal Aftonbladet, onde ela assina uma das colunas políticas mais lidas do país.

”Mas eles têm privilégios”, reage Lena.

”Quais?”, quero saber.

”Os políticos não precisam pagar suas contas de telefone. Eles têm direito a viver de graça em apartamentos no centro de Estocolmo. Eles recebem um computador para levar para casa, e não pagam pela assistência técnica. Eles ganham mais do que a média dos cidadãos. E os parlamentares que vêm de outras bases eleitorais também viajam de graça para suas casas, nos finais de semana”, enumera a jornalista. ”Se algum cidadão arranjar emprego em outra cidade, nenhum empregador vai pagar suas viagens no fim de semana”.

Pergunto a Lena se estes são benefícios considerados razoavelmente modestos na Suécia, em comparação às benesses que políticos recebem em outros países.

”Pode ser. Os políticos suecos não têm luxo, pois somos uma sociedade que elegeu a igualdade entre os cidadãos como um valor fundamental. Mas eles têm privilégios”, ela insiste.

”Mas não privilégios como, por exemplo, parlamentares circulando em carros oficiais com motoristas particulares?”, digo.

”Carros com motorista para deputados? Meus Deus, não!”, sobressalta-se Lena. ”Benesses deste gênero criam problemas que você não precisa ter. Como a corrupção. Para obter um emprego desses na política, muitos não hesitariam em cometer atos sujos”, pondera Lena.

Pergunto qual seria a reação dos suecos se os políticos do país decidissem, em uum devaneio impensado e incontrolável, aumentar seus próprios salários, ter direito a pensão vitalícia, ocupar espaçosos gabinetes com copa e cafezinho servido por secretárias, empregar dezenas de assistentes particulares e parentes, andar de jatinhos e circular em carros oficiais com motorista. Tudo pago com o dinheiro dos cidadãos.

”A sociedade sueca jamais toleraria a concessão de privilégios aos seus políticos”, ela diz.

”Isto é uma das poucas coisas que poderiam causar uma revolução aqui na Suécia.”

UM NOVO MOMENTO PARA A HISTÓRIA?

Noam Chomsky não é onisciente, claro! Mas é extremamente lúcido ao escrever o assunto abaixo, que recomendo. Nele, está proposto o momento em que  a Humanidade deve abrir os sentidos e renovar os seus rumos, sob pena do seu fim. Exagero? Penso que não!, pois é fácil pensarmos um pouco sobre o volume de informações que nos chegam todos os dias, pelos diversos meios de que dispomos, e cujos resultados são assustadores, tanto pela banalização da vida das pessoas e das nações, quanto pela desimportância que atribuímos aos meios da natureza que dão base à vida.
Então, boa leitura, embora assustadora!
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O fim da História? 
Noam Chomski

Não é agradável contemplar os pensamentos que devem estar passar pela mente da coruja de Minerva [I] quando, ao cair do crepúsculo, se entrega à tarefa de interpretar a era da civilização humana que pode agora estar a aproximar-se de um inglório fim.
A era iniciou-se há quase 10.000 anos no Crescente Fértil, estendendo-se desde as terras dos rios Tigre e Eufrates, através da Fenícia na costa oriental do Mediterrâneo, até ao vale do Nilo e daí para a Grécia e mais além. O que está a acontecer nesta região fornece lições dolorosas sobre as profundezas a que a espécie pode descer.
A terra do Tigre e do Eufrates tem sido palco para horrores indizíveis nos últimos anos. A agressão George W. Bush-Tony Blair de 2003, que muitos iraquianos comparam às invasões mongóis do século 13, foi mais outro golpe letal. Destruiu muito do que sobreviveu às sanções da ONU ao Iraque dirigidas por Bill Clinton, condenadas como “genocidas” pelos ilustres diplomatas Denis Halliday e Hans von Sponeck, que as administraram antes de se demitirem em protesto. Os relatórios devastadores de Halliday e von Sponeck receberam o tratamento usual dado a fatos indesejados.
Uma terrível consequência da invasão dos EUA-Inglaterra é retratada num “guia visual para a crise no Iraque e naSíria” do New York Times: a mudança radical de Bagdá, de bairros mistos em 2003 para enclaves sectários de hoje, aprisionada num ódio amargo. Os conflitos inflamados pela invasão espalharam-se mais além e estão agora a rasgar toda a região em pedaços.
Grande parte da área do Tigre-Eufrates está nas mãos do Isis [II] e do seu autoproclamado Estado Islâmico, uma caricatura sombria da forma extremista do Islã radical que tem sede na Arábia Saudita. Patrick Cockburn, um correspondente do Oriente Médio para o The Independent e um dos analistas mais bem informado do Isis, descreve-o como “uma organização muito horrível, fascista em muitas formas, muito sectária, mata alguém que não acredita no seu tipo rigoroso e particular de Islã”.
Cockburn também aponta para a contradição na reação ocidental ao surgimento do Isis: os esforços para conter o seu avanço no Iraque juntamente com outros para minar o adversário principal do grupo na Síria, o regime brutal de Bashar Assad. Enquanto isso, a maior barreira para a disseminação da praga do Isis no Líbano é o Hezbollah, um inimigo odiado dos EUA e do seu aliado israelense. E para complicar a situação ainda mais, os Estados Unidos e o Irã agora compartilham uma justificada preocupação com a ascensão do Estado Islâmico, como fazem outros nesta região altamente conflitiva.
O Egito tem mergulhado em alguns dos seus dias mais sombrios sob uma ditadura militar que continua a receber apoio dos EUA. O destino do Egito não estava escrito nas estrelas. Durante séculos, caminhos alternativos foram bastante viáveis e, não raramente, uma pesada mão imperial barrou o caminho.
Depois dos horrores renovados destas poucas semanas últimas, não deveria ser necessário comentar o que emana de Jerusalém, na história remota considerada um centro moral.
Há oitenta anos Martin Heidegger exaltava a Alemanha nazista por fornecer a melhor esperança de salvar a civilização gloriosa dos gregos dos bárbaros do Oriente e do Ocidente. Hoje, os banqueiros alemães esmagam a Grécia sob um regime econômico projetado para lhes manter a riqueza e poder.
O fim provável da era da civilização é prenunciado num novo projeto de relatório do Painel Intergovernamental de Mudança Climática (IPCC, sigla em inglês), monitor em regra conservador do que está a acontecer com o mundo físico.
O relatório conclui que as crescentes emissões de gases estufa são riscos de “impactos graves, penetrantes e irreversíveis para pessoas e ecossistemas” nas próximas décadas. O mundo está a se aproximando da temperatura em que a perda da vasta cobertura de gelo sobre a Groenlândia será irreversível. Junto ao gelo da Antártica, pode elevar os níveis do mar e inundar as principais cidades, bem como planícies costeiras.
A era da civilização coincide de perto com a época geológica do Holoceno que começou há mais de 11.000 anos. A época anterior do Pleistoceno durou 2,5 milhões de anos. Os cientistas sugerem agora que uma nova época começou há cerca de 250 anos, o Antropoceno, período em que a atividade humana tem tido um impacto dramático sobre o mundo físico. A velocidade da mudança das épocas geológicas é difícil de ignorar. O Egito tem mergulhado em alguns dos seus dias mais sombrios sob uma ditadura militar que continua a receber o apoio dos EUA. O destino do Egito não estava escrito nas estrelas. Durante séculos, caminhos alternativos têm sido bastante viáveis, e não raro, uma mão pesada imperial tem barrado o caminho.
Um índice do impacto humano é a extinção de espécies, a qual se estima agora estima estar à mesma velocidade de há 65 milhões anos, quando um asteroide atingiu a terra. A causa presumível para o final da era dos dinossauros, que abriu o caminho para que pequenos mamíferos proliferassem e, por fim, seres humanos modernos. Hoje os seres humanos é que são o asteroide, condenando boa parte da vida à extinção.
O relatório do IPCC reafirma que a “maioria” das reservas conhecidas de combustível devem ser deixadas no solo para evitar riscos intoleráveis para as gerações futuras. Enquanto isso, as principais corporações energéticas não fazem qualquer segredo do seu objetivo de explorar essas reservas e descobrir novas.
Um dia antes do seu resumo das conclusões do IPCC, o New York Times informou que enormes estoques de cereais do Oriente Médio estão a apodrecer para que os produtos do boom do petróleo do Dakota do Norte possam ser enviados por via ferroviária para a Ásia e a Europa.
Uma das mais temidas consequências do aquecimento global antropogênico é o degelo das regiões de permafrost [III]. Um estudo na revista Science adverte que “mesmo temperaturas ligeiramente mais quentes [menos do que as previstas nos próximos anos] poderiam começar a fundir o permafrost, que, por sua vez, corre o risco de desencadear a libertação de vastas quantidades de gases estufa aprisionadas no gelo,” com possíveis “consequências fatais” para o clima global.
Arundhati Roy sugere que a “metáfora mais apropriada para a loucura dos nossos tempos” é o glaciar de Siachen, onde soldados indianos e paquistaneses se mataram uns aos outros no campo de batalha mais alto do mundo. Agora o glaciar derrete-se revelando “milhares de obuses vazios, barris de combustível vazios, picaretas de gelo, botas velhas, tendas e todo o tipo de resíduos que milhares de humanos guerreando-se geram” num conflito sem sentido. E à medida que os glaciares fundem, a Índia e o Paquistão enfrentam um desastre indescritível.
Triste espécie. Pobre coruja.
NOTAS
[I] NT: referência à expressão de Hegel para exprimir a sua ideia de conhecimento histórico, possível no ocaso do acontecimento.
[II] Estado Islâmico do Iraque e da Síria, em inglês
[III] Camada congelada no subsolo.

COCÔ


O artigo de Antonio Prata está uma delícia de se ler. Delícia porquê realista e, se realista, põe-nos frente à realidade, aquela sobre a qual não pensamos, às vezes por falta de visão dos fatos, outras por preguiça de vê-los, ou, ainda, por pudores mantidos e conservados por crenças ou culturas mal desenvolvidas.

Enfim, recomendo a leitura abaixo.

 

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Um ganso novo, bem emplumado

ANTONIO PRATA, Folha de São Paulo-07/09/2014

 

Pudibundo leitor, já vou logo avisando: o assunto aqui, hoje, é cocô. Sim, cocô. Minha mulher bem que tentou me dissuadir: "Antonio, você fica escrevendo bobagem, depois ninguém mais te leva a sério".

Bobagem? Einstein fazia cocô. Angela Merkel faz cocô. Há 2.500 anos, o solo em que florescia o pensamento ocidental era adubado por Sócrates, Aristóteles e Platão. Ora, bolas, carambolas: falemos sobre cocô.

Freud afirmou que o cocô é a primeira obra de um ser humano. Bem pequenininha, a criança repara que o cocô gera certa comoção social: adultos mudam de expressão, há movimentação pela sala, alguém a leva pro quarto e troca sua fralda.

Os meninos que mal sentem vontade e já vão logo se aliviando serão os futuros perdulários, os que comem a calda antes do sorvete e perdem as tampas de todas as "Bics". Já os que esperam um bom quorum, os que seguram até, digamos, o meio do jantar, serão os econômicos, os que têm a biblioteca organizada por ordem alfabética com a lista atualizada no Excel.

A sociologia também se ocupou do cocô. Em "O Processo Civilizador", Norbert Elias mostra, com elegância e erudição, como a decadência da nobreza guerreira e o surgimento da sociedade cortesã, a partir do século 15, mudaram a relação da humanidade com o cocô. (E também com o xixi, o pum e os arrotos, mas o assunto aqui, hoje, é cocô).

Na literatura, o clássico que mais versa sobre o cocô é provavelmente "Gargântua e Pantagruel", do Rabelais, com um capítulo inteiramente dedicado às formas de se limpar. Não vou entrar em detalhes, só digo que o método mais elogiado envolve "um ganso novo, bem emplumado".

Numa das primeiras telas do Miró, "A Fazenda", há, no centro de uma paisagem rural, um menininho fazendo cocô. Trata-se do "Caganer", uma figura importante do folclore catalão, que representa a fertilidade e a ligação do homem com a terra.

Salvador Dalí, em seu "Diário de um Gênio" faz descrições minuciosas dos próprios cocôs, os compara aos chifres dos rinocerontes e menciona algo sobre o cone ser a forma preferida de Deus –mas
isso, provavelmente, diz mais sobre o cocô do Dalí do que sobre as predileções de Javé.

Às vezes, quando a ressaca ou a melancolia removem dos meus olhos o "insulfilm" da normalidade, encaro a multidão num cruzamento e penso: "Todos esses fazem cocô. Todo dia. Passai, passai e defecai em paz, pobres mortais, até o dia em que não defecardes mais..."

Às vezes, no aeroporto, quando cinco aeromoças da KLM atravessam meu caminho sem me dirigir sequer o branco dos seus olhos, as imagino na privada e quase consigo me proteger de suas desoladoras belezas.

Às vezes, penso: qual será a velocidade com que sai o cocô? E penso: entre os 7 bilhões de seres humanos sobre a Terra, há sem dúvida um cujo cocô é o mais rápido de todos. Quem será esse sujeito, sentado sobre a própria glória, sem saber que é um campeão?

Viu, pudibundo leitor, como o cocô pode ser instrutivo, cômico, triste, lírico, até? Não? Achou tudo isso uma grande bobagem? Ora, não se enfeze, é fácil se vingar de um cronista: basta atear fogo às suas palavras ou –vingança das vinganças!– dar ao fruto do seu trabalho o mesmo fim que Gargântua daria a "um ganso novo, bem emplumado". 

 

O QUARTO PODER CRIMINOSO

  _____________________________________________________________ A Imprensa, dita quarto poder, cria uma realidade virtual que não correspond...