ENTENDER O MUNDO

Sugiro a leitura do texto abaixo, de Eduardo Galeano, cujo livro mais conhecido é “As Veias Abertas da América Latina”. Por esta  obra ele procurou mostrar como o colonialismo teria extraído impunemente riquezas locais, explorando o homem aborígene, tanto pela utilização escravista da mão-de-obra, quanto pela desvalorização da vida. Enfim, é um livro que procura resgatar aspectos factuais que moldaram a personalidade do povo latino-americano.
Já, no escrito presente, Galeano faz uma crítica,  meio ácida, meio irônica, meio cômica dos costumes consumistas  atuais, confrontados com os modos de viver antigos. Mas, também, não tão antigos assim! Ocorre que nos últimos 40 anos, aproximadamente, aconteceram mudanças tão substanciais, ou radicais, que se torna difícil viver o hoje, procurando entender o ontem, sem havê-lo vivido.
Boa leitura, pois!
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CAÍ NO MUNDO E NÃO SEI COMO VOLTAR

O que acontece comigo é que não consigo andar pelo mundo pegando coisas e trocando-as pelo modelo seguinte só por que alguém adicionou uma nova função ou a diminuiu um pouco…

Não faz muito, com minha mulher, lavávamos as fraldas dos filhos, pendurávamos na corda junto com outras roupinhas, passávamos, dobrávamos e as preparávamos para que voltassem a serem sujadas. 
E eles, nossos nenês, apenas cresceram e tiveram seus próprios filhos se encarregaram de atirar tudo fora, incluindo as fraldas. Se entregaram, inescrupulosamente, às descartáveis!

Sim, já sei. À nossa geração sempre foi difícil jogar fora. Nem os defeituosos conseguíamos descartar! E, assim, andamos pelas ruas, guardando o muco no lenço de tecido, de bolso.
Nããão! Eu não digo que isto era melhor. O que digo é que, em algum momento, me distraí, caí do mundo e, agora, não sei por onde se volta. 

O mais provável é que o de agora esteja bem, isto não discuto. O que acontece é que não consigo trocar os instrumentos musicais uma vez por ano, o celular a cada três meses ou o monitor do computador por todas as novidades.
Guardo os copos descartáveis! Lavo as luvas de látex que eram para usar uma só vez.

Os talheres de plástico convivem com os de aço inoxidável na gaveta dos talheres! É que venho de um tempo em que as coisas eram compradas para toda a vida!

É mais! Se compravam para a vida dos que vinham depois! A gente herdava relógios de parede, jogos de copas, vasilhas e até bacias de louça.
E acontece que em nosso, nem tão longo matrimônio, tivemos mais cozinhas do que as que haviam em todo o bairro em minha infância, e trocamos de refrigerador três vezes. 

Nos estão incomodando! Eu descobri! Fazem de propósito! Tudo se lasca, se gasta, se oxida, se quebra ou se consome em pouco tempo para que possamos trocar.
Nada se arruma. O obsoleto é de fábrica.
Aonde estão os sapateiros fazendo meia-solas dos tênis Nike? Alguém viu algum colchoeiro encordoando colchões, casa por casa? Quem arruma as facas elétricas? o afiador ou o eletricista? Haverá teflon para os funileiros ou assentos de aviões para os talabarteiros?

Tudo se joga fora, tudo se descarta e, entretanto, produzimos mais e mais e mais lixo. Outro dia, li que se produziu mais lixo nos últimos 40 anos que em toda a história da humanidade.

Quem tem menos de 30 anos não vai acreditar: quando eu era pequeno, pela minha casa não passava o caminhão que recolhe o lixo! Eu juro! E tenho menos de ... anos! Todos os descartáveis eram orgânicos e iam parar no galinheiro, aos patos ou aos coelhos (e não estou falando do século XVII). Não existia o plástico, nem o nylon. A borracha só víamos nas rodas dos autos e, as que não estavam rodando, as queimávamos na Festa de São João. Os poucos descartáveis que não eram comidos pelos animais, serviam de adubo ou se queimava..
Desse tempo venho eu.  E não que tenha sido melhor.... É que não é fácil para uma pobre pessoa, que educaram com "guarde e guarde que alguma vez pode servir para alguma coisa", mudar para o "compre e jogue fora que já vem um novo modelo".
Troca-se de carro a cada 3 anos, no máximo, por que, caso contrário, és um pobretão. Ainda que o carro que tenhas esteja em bom estado... E precisamos viver endividados, eternamente, para pagar o novo!!! Mas... por amor de Deus!
Minha cabeça não resiste tanto. Agora, meus parentes e os filhos de meus amigos não só trocam de celular uma vez por semana, como, além disto, trocam o número, o endereço eletrônico e, até, o endereço real.

E a mim que me prepararam para viver com o mesmo número, a mesma mulher e o mesmo nome (e vá que era um nome para trocar). Me educaram para guardar tudo. Tuuuudo! O que servia e o que não servia. Por que, algum dia, as coisas poderiam voltar a servir. 

Acreditávamos em tudo. Sim, já sei, tivemos um grande problema: nunca nos explicaram que coisas poderiam servir e que coisas não. E no afã de guardar (por que éramos de acreditar), guardávamos até o umbigo de nosso primeiro filho, o dente do segundo, os cadernos do jardim de infância e não sei como não guardamos o primeiro cocô.

Como querem que entenda a essa gente que se descarta de seu celular a poucos meses de o comprar? Será que quando as coisas são conseguidas tão facilmente, não se valorizam e se tornam descartáveis com a mesma facilidade com que foram conseguidas?
Em casa tínhamos um móvel com quatro gavetas. A primeira gaveta era para as toalhas de mesa e os panos de prato, a segunda para os talheres e a terceira e a quarta para tudo o que não fosse toalha ou talheres. E guardávamos...

Como guardávamos!! Tuuuudo!!! Guardávamos as tampinhas dos refrescos!! Como, para quê?  Fazíamos limpadores de calçadas, para colocar diante da porta para tirar o barro. Dobradas e enganchadas numa corda, se tornavam cortinas para os bares. Ao fim das aulas, lhes tirávamos a cortiça, as martelávamos e as pregávamos em uma tabuinha para fazer instrumentos para a festa de fim de ano da escola.

Tuuudo guardávamos! Enquanto o mundo espremia o cérebro para inventar acendedores descartáveis ao término de seu tempo, inventávamos a recarga para acendedores descartáveis. E as Gillette até partidas ao meio se transformavam em apontadores por todo o tempo escolar. E nossas gavetas guardavam as chavezinhas das latas de sardinhas ou de corned-beef, na possibilidade de que alguma lata viesse sem sua chave.
E as pilhas! As pilhas das primeiras Spica passavam do congelador ao telhado da casa. Por que não sabíamos bem se se devia dar calor ou frio para que durassem um pouco mais. Não nos resignávamos que terminasse sua vida útil, não podíamos acreditar que algo vivesse menos que um jasmim. As coisas não eram descartáveis. Eram guardáveis.

Os jornais!!! Serviam para tudo: para servir de forro para as botas de borracha, para por no piso nos dias de chuva e por sobre todas as coisa para enrolar.

Às vezes sabíamos alguma notícia lendo o jornal tirado de um pedaço de carne!!! E guardávamos o papel de alumínio dos chocolates e dos cigarros para fazer guias de enfeites de natal, e as páginas dos almanaques para fazer quadros, e os conta-gotas dos remédios para algum medicamento que não o trouxesse, e os fósforos usados por que podíamos acender uma boca de fogão (Volcán era a marca de um fogão que funcionava com gás de querosene) desde outra que estivesse acesa, e as caixas de sapatos se transformavam nos primeiros álbuns de fotos e os baralhos se reutilizavam, mesmo que faltasse alguma carta, com a inscrição a mão em um valete de espada que dizia "esta é um 4 de bastos".

As gavetas guardavam pedaços esquerdos de prendedores de roupa e o ganchinho de metal. Ao tempo esperavam somente pedaços direitos que esperavam a sua outra metade, para voltar outra vez a ser um prendedor completo.

Eu sei o que nos acontecia: nos custava muito declarar a morte de nossos objetos. Assim como hoje as novas gerações decidem matá-los tão-logo aparentem deixar de ser úteis, aqueles tempos eram de não se declarar nada morto: nem a Walt Disney!!!

E quando nos venderam sorvetes em copinhos, cuja tampa se convertia em base, e nos disseram: Comam o sorvete e depois joguem o copinho fora, nós dizíamos que sim, mas, imagina que a tirávamos fora!!! As colocávamos a viver na estante dos copos e das taças. As latas de ervilhas e de pêssegos se transformavam em vasos e até telefones. As primeiras garrafas de plástico se transformaram em enfeites de duvidosa beleza. As caixas de ovos se converteram em depósitos de aquarelas, as tampas de garrafões em cinzeiros, as primeiras latas de cerveja em porta-lápis e as cortiças esperaram encontrar-se com uma garrafa. 

E me mordo para não fazer um paralelo entre os valores que se descartam e os que preservávamos. Ah!!! Não vou fazer!!!
Morro por dizer que hoje não só os eletrodomésticos são descartáveis; também o matrimônio e até a amizade são descartáveis. Mas não cometerei a imprudência de comparar objetos com pessoas.

Me mordo para não falar da identidade que se vai perdendo, da memória coletiva que se vai descartando, do passado efêmero. Não vou fazer.
Não vou misturar os temas, não vou dizer que ao eterno tornaram caduco e ao caduco fizeram eterno.
Não vou dizer que aos velhos se declara a morte apenas começam a falhar em suas funções, que aos cônjuges se trocam por modelos mais novos, que as pessoas a que lhes falta alguma função se discrimina o que se valoriza aos mais bonitos, com brilhos, com brilhantina no cabelo e glamour. 

Esta só é uma crônica que fala de fraldas e de celulares. Do contrário, se misturariam as coisas, teria que pensar seriamente em entregar à bruxa, como parte do pagamento de uma senhora com menos quilômetros e alguma função nova. Mas, como sou lento para transitar este mundo da reposição e corro o risco de que a bruxa me ganhe a mão e seja eu o entregue... 
Eduardo Galeano
Jornalista e escritor uruguaio


O PODER CORROMPE

Nesta época em que não temos mais contextualizada a Moral, como centro da atividade republicana e não respeitamos os princípios democráticos, pelos quais o povo elege candidatos e, estes, devem representar a vontade e os interesses populares, é importante relembrar alguns conceitos. No nosso momento nacional vemos um conjunto de parlamentares, em todos os níveis, valorizando mais os seus próprios interesses, ou dos governantes dos quais são meros vassalos, do que os anseios que geraram promessas de campanha, agora não cumpridas. Não conseguimos mais vislumbrar os horizontes do bom senso e o que vemos é apenas o muro intransponível das nossas vontades de cidadãos, cercando os palácios de interesses e de conchavos proveitosos para eles próprios. O Poder Executivo, então, costuma jogar no lixo a lista de princípios conceituais, ideológicos, morais, éticos, republicanos e democráticos que sempre foram seu objetivo no passado, para se acomodar no gostoso, mas duvidoso, leito da mordomia, do ganho fácil, do patrimonialismo e do aparelhamento governamental.
No Brasil, esses desvios são favorecidos pelo sistema eleitoral que não representa de forma absoluta  a vontade do cidadão e prioriza a autoproteção do parlamentar. Já no Executivo, o válido é o assistencialismo como forma de ganhar apoio e a manutenção, governo após governo, potencializando programas conjunturais, sem valorizar os estruturais, aqueles que podem projetar o País para décadas.  
No texto abaixo de Francisco Ferraz, para o sítio Política para Políticos, está o roteiro de como isso ocorre e os seus perigos:
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O poder corrompe

Lord Acton: "O poder tende a corromper - e o poder absoluto corrompe absolutamente"

Como e por que a autoridade política transforma as relações sociais quando confunde os privilégios do cargo com benesses pessoais
Ao longo da história, muitas e variadas têm sido as formas de descrever o poder político, e talvez não haja nenhum outro dito tão conhecido e tão citado quanto este, pronunciado por Lord Acton. A imputação de que o poder absoluto é intrínseca e irremediavelmente corruptor ganhou uma validação quase irrefutável com a experiência dos totalitarismos do século XX, seja na versão nazista, seja na stalinista. Tais exercícios levaram o conceito de poder absoluto ao seu extremo. Frente a ele, o exemplo dos chamados monarcas absolutistas dos séculos XVII, XVIII e XIX, permanece muito aquém dos limites de brutalidade, arbitrariedade e de desagregação das estruturas sociais atingidas pelos sistemas totalitários.
Não somente o passado recente comprovou a sabedoria do dito de Lord Acton, mas a própria teoria política, desde a mais remota antiguidade, já afirmava que o poder absoluto corrompe plenamente. Platão, ao comparar as formas de governo, em sua "República", situa a tirania como a pior de todas elas. O filósofo grego descreve com maestria como o tirano alcança o poder - com o apoio ingênuo das massas; a maneira como transforma este poder em poder absoluto - eliminando seus adversários; como substitui as pessoas de qualidade que, iludidas, o acompanharam - substituindo-as por indivíduos corruptos e submissos; como se cerca de uma guarda pessoal e de como é forçado a recorrer a guerras - para distrair a atenção do povo. Sua representação da tirania como forma de governo e a deformação que introduz na personalidade do tirano é clássica e definitiva, antecipando em detalhes o comportamento dos totalitários modernos.

O poder que não é absoluto

Esclarecido, então, que o poder absoluto corrompe absolutamente quem o exerce, persiste a dúvida: por que o poder que não é absoluto tende a corromper? Em primeiro lugar, é necessário conceituar mais precisamente o significado de "corromper", já que a expressão, em sua correta acepção, não equivale, necessariamente, à prática da corrupção. O sentido do verbo corromper é muito mais amplo e significa a transformação que se opera no indivíduo que é alçado a posições de poder que o tornam diferente dos demais cidadãos. A ascensão a funções de poder político deslocam o sujeito da esfera da vida privada para a da vida pública - e esta não é uma mudança banal. Principalmente porque a autoridade política implica poder sobre as pessoas. Ela agride o sentimento profundo de uma radical igualdade entre os indivíduos.

Liberdade e organização

O poder tende a corromper porque há um inclinação em perceber as homenagens e deferências prestadas ao cargo como se fossem dedicadas à pessoa

O poder político tem sua origem na necessidade - e não na espontânea vontade - de os indivíduos viverem submetidos a uma autoridade. Todas as sociedades, em todos os tempos, tiveram que definir sua própria combinação entre liberdade e organização. Uma coletividade na qual os cidadãos são totalmente livres é uma utopia. Assim como é totalitária uma sociedade onde a liberdade individual é substituída pela adesão disciplinada e compulsória às regras ditadas por quem detém o poder.
Na verdade, todas as obras dos autores clássicos da teoria política ocidental podem ser resumidas nesta polaridade: como conciliar liberdade e organização? O controle sobre os demais, exclusivo da esfera política, diferencia-se, portanto, de todas as outras formas de poder existentes na vida em sociedade.
Tal modalidade de domínio, amparado no uso legítimo da "sanção física" (punição), é exclusivo do Estado, que detém o seu monopólio dentro de um território definido e sobre uma população determinada. No seu limite, o poder pode chegar a exigir a vida dos que a ele estão submetidos. Na sua operação normal, ele depende do que Max Weber chamou de "uso ou ameaça de uso da sanção física", para assegurar o respeito às leis.
Não é por outra razão que o poder sobre os outros sempre precisou ser justificado por alguma doutrina. Sem um arrazoado nobre que o legitime, adquire contornos insuportáveis. Religião, tradição, nação, classe, partido e soberania popular foram, ao longo da história, os principais critérios que legalizaram uma determinada autoridade.
"O poder tende a corromper" porque faz de seu detentor uma pessoa diferente das demais. Cerca-a de símbolos, distinções, privilégios e imunidades que sinalizam sua hierarquia superior. Regras de cerimonial regulamentam o comportamento na sua presença. Gestos de deferência e respeito lhe são devidos. Com o passar do tempo, a transformação do indivíduo privado em autoridade pública se consuma. No bojo desta metamorfose está embutido o risco da tendência corruptora do poder, sobre a qual fala Lord Acton.
O poder tende a corromper porque há um inclinação em perceber as homenagens e deferências prestadas ao cargo como se fossem dedicadas à pessoa. Na política, como na Igreja Católica, cedo foi necessário deixar bem claras as distinções existentes entre os poderes da função (múnus) e as contingências sempre precárias da natureza humana. Na Igreja, os poderes sacramentais de um sacerdote não são afetados por suas falhas pessoais, preservando-se na sua plenitude.

O poder na política

Na política também ocorre o mesmo. Os privilégios, distinções, imunidades, homenagens e deferências referem-se ao cargo e não à pessoa que, eventual e circunstancialmente, os encarna. Sem esta distinção entre a santidade da função (Igreja) ou os poderes do cargo (Política) e a fragilidade da natureza humana, ambas as instituições somente poderiam sobreviver se os membros que as incorporam fossem moralmente perfeitos - um ideal utópico e, obviamente, irrealizável.
A observação de Lord Acton insere-se exatamente neste ponto. A fragilidade da natureza humana tende a provocar uma distorção personalizante no exercício do poder político, com o eventual titular da função pública apropriando-se, de variadas formas, dos poderes que são inerentes ao cargo e não à sua pessoa.
A advertência de Lord Acton é um eco, distante 19 séculos, da frase que o escravo que segurava a coroa de louros sobre a cabeça do general vitorioso pronunciava, incessantemente, ao seu ouvido, durante o "triunfo" (a entrada em Roma e o desfile pela cidade a frente de seu exército): "Não te esqueças de que és humano"



SISTEMA ELEITORAL

O Poder Legislativo virou objeto de chacota. Pior do que isso, deixou, há muito tempo, de ter  papel de relevo como Instituição Nacional e de fonte de apoio às reivindicações populares, para ser identificado como foco de proselitismo, de patrimonialismo e de corrupção. Há, então, necessidade de buscar alternativas que melhorem o processo de escolha desses representantes, valorizando o voto dos eleitores.
Sugiro, pois, a leitura do texto abaixo que ajuda a repensar o tema:
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Cabe ao povo decidir pelo sistema eleitoral
Júlio César Cardoso, para o Instituto Millenium
Por que o Brasil – em nome da verdadeira democracia popular, cujo agente principal é o povo e não os representantes políticos – não consulta a sociedade para saber qual o sistema eleitoral que ela realmente deseja? Não pode ser considerada legítima a decisão vinda de cima para baixo, ou seja, o prevalecimento de posições de congressistas e de algumas entidades tradicionais representativas de segmentos brasileiros. A reforma política diz respeito à sociedade como um todo, e não pode somente representar as ideologias de grupos políticos, que se arvoram no direito de pretender estabelecer regras de sistema eleitoral que a sociedade deve seguir. Isso não está certo e representa um desrespeito à nossa democracia eleitoral. O povo tem que ser mais ouvido no seu direito de cidadania, pois é ele que elege o Congresso e, portanto, não pode ficar à margem das discussões.
Tem-se assistido a debates políticos, com a participação de parlamentares sobre a reforma do sistema eleitoral, em que fica evidenciada a intenção de grupos políticos de defender a proposta que melhor atenda a seus interesses de poderem continuar na vida parlamentar. Os parlamentares não estão preocupados com o posicionamento da sociedade, que não aceita mais o sistema eleitoral vigente, bem como a sua composição com qualquer outro sistema.

Se for feita uma consulta popular, porque este deveria ser o caminho correto, certamente a melhor proposta da sociedade seria a adoção do voto distrital puro. Por quê? Porque é o sistema eleitoral mais simples, objetivo e barato.
Vejamos:
a) A eleição vai ser descentralizada. Cada estado será divido em distrito com um número fixo de eleitor. Os partidos apresentam os candidatos por distrito. E quem receber mais voto ficará com a vaga. Assim, os eleitores terão um leque mais reduzido de candidatos a escolher.
b) Com um representante por distrito fica mais fácil para o eleitor fiscalizar o parlamentar. Hoje, o parlamentar não é fiscalizado, aliás, pelo sistema atual, a maioria dos eleitores não sabe em que deputado federal votou.
c) No sistema distrital haverá o barateamento das campanhas, pois cada candidato só disputará voto em seu distrito, reduzindo os custos com viagens e gastos com material de propaganda.
d) Os deputados distritais não vão se transformar em vereadores de luxo, para só tratar de sua paróquia, porque o eleitor estará presente para cobrança. Hoje, pelo sistema atual, muitos parlamentares são mais estaduais do que federais, fisiologistas e estão no Parlamento por cabide de emprego ou para defender interesses particulares ou de grupos que representam.
e) O sistema não prejudicará minorias. No Brasil não existem minorias permanentemente alijadas, como os sunitas, em alguns países árabes, conforme afirma o cientista político Amaury de Souza. Na prática, os candidatos de um distrito terão de buscar o apoio de todos os grupos de eleitores, se quiserem vencer.
f) Não haverá dinastias locais eternizadas pelo poder econômico e político, como existe no sistema atual – José Sarney, Jáder Barbalho etc – em que o dinheiro faz a diferença para aqueles que precisam se deslocar em grandes territórios para disputar votos. Ao concentrarem a campanha em um distrito, os candidatos menos poderosos terão mais facilidade de chegar ao eleitor no corpo a corpo.
g) Os partidos não ficarão mais enfraquecidos. Na realidade no Brasil não existe partido político, mas sim um cipoal de siglas partidárias, composto de políticos de siglas com várias tendências ideológicas internas. O PMDB e o PT, por exemplo, convivem com várias divergências ideológicas internas. No sistema vigente vota-se em candidatos e não em partidos. Quem votou em Tiririca, na realidade, não votou no partido, pois se Tiririca pertencesse a outro partido seria eleito da mesma forma. O voto distrital determinará melhor qualificação dos partidos, com gente séria, ilibada e competente, e os partidos nanicos não poderão mais se apoiar em coligações e muitos desaparecerão.
h) Não é verdadeiro o pressuposto de que o voto distrital não vai eleger grandes cabeças pensantes. E no sistema atual porventura são eleitas grandes cabeças pensantes? Nesta legislatura, 36 dos 513 deputados federais elegeram-se com votos próprios, o restante entrou graças ao facilitador coeficiente eleitoral. Desses 36, quantos são grandes pensadores? E o que dizer dos 477 caronistas?
i) Aqui está o maior mérito do voto distrital: a aproximação do eleito com o eleitor. Como cada político representa uma região delimitada, os eleitores do lugar poderão acompanhar mais atentamente o trabalho dos parlamentares em Brasília. Hoje, temos um sistema que distancia o eleito do eleitor, e a maioria não sabe em que parlamentar votou.

Qualquer cidadão de mediana cultura sabe que nenhum partido político brasileiro traz em seu bojo consistência de um projeto alternativo ao país. Nem o PT do Lula, que na realidade copiou o modelo de política econômica de FHC, com algumas alterações. Portanto, o voto distrital puro é o caminho mais eficaz para se ter um Parlamento efetivamente representativo e fiscalizado. É o voto da transparência em que se conhece o candidato e não o voto cego de lista fechada. Nada de sistema misto ou de lista fechada, para beneficiar alguns políticos.

A DÉBITO DAS GERAÇÕES ATUAIS

O Instituto Humanitas  tem trazido à discussão de forma oportuna, o tema sobre a construção de hidrelétricas, especialmente quando se debate nacional e internacionalmente a usina de Belo Monte. Agora, na entrevista abaixo, com um biólogo gaúcho, é analisada a questão do licenciamento unilateral, unidade por unidade, esquecendo-se de avaliar o impacto global de vários empreendimentos semelhantes, em áreas com características ambientais correlatas, independentemente de menor ou maior extensão territorial. Afora isso, um assunto que não recebe comentários enfáticos na entrevista, pois o foco é mais regional e voltado para um dos aspectos da questão, há que analisar o impacto nas populações quando surge um empreendimento que desaloja pessoas, desagrega o sistema produtivo, modifica as condições ecológicas, tudo com base em estudos legais, claro, e bem estruturados na sua apresentação, mas...comprados no mercado.
Quanto da vida, em todos os seus sentidos, iniciando no individual humano, culminando no psicossocial, mas passando por todos os outros estágios, são afetados? A isso, certamente, o sistema não dá a devida atenção e as gerações vindouras restarão perplexas quando olharem para trás, no tempo, e comentarão quanto se perdeu e o quanto elas estarão sofrendo, em razão da ambliopia das gerações presentes.
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Uma calamidade social. Mais de 50 mil pessoas afetadas pelas hidrelétricas no RS.

Entrevista especial com Paulo Brack

“Queremos que se defenda a lei, nem que seja o princípio da razoabilidade, pois o chamado desenvolvimento, agora, já é explicitamente insustentável. Queremos que as empresas e os governos responsáveis por isso tudo tenham que pagar na justiça e tenham o destino que a história lhes reserva”. O desabafo é do biólogo gaúcho Paulo Brack, em entrevista concedida por e-mail àIHU On-Line.
Na sua visão, as licenças ambientais para a liberação das atividades nas hidrelétricas gaúchas continuam sendo emitidas “muito mais como uma decisão política do que com base em fundamentos técnicos e que deveriam respeitar os marcos legais da área ambiental. A ordem é atender as demandas econômicas mais imediatas”.
E acrescenta:
“O licenciamento continua sendo forçado a avaliar os empreendimentos de forma isolada, caso a caso, e acaba entrando numa lógica esquizofrênica que consolida a maneira de atender, simplesmente, os ditames dos projetos governamentais e os interesses das empresas. O que vai se perder em biodiversidade parece não interessar mais. Os estudos de impacto consagram-se como uma grande formalidade, tremendamente tendenciosos e de baixo nível técnico, servindo apenas para assegurar a emissão de licenças. É um escândalo, que ninguém mais nega e acaba se tornando fato consumado”.
Paulo Brack é mestre em Botânica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutor em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos. Desde 2006, vem fazendo parte da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio e também representa o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – Ingá, no Conselho Estadual do Meio Ambiente do RS – Consema-RS.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quantas usinas hidrelétricas o Rio Grande do Sul tem atualmente?
Paulo Brack - A Agencia Nacional de Energia Elétrica – ANEEL possui um banco de informações de geração  que dá conta de que, aproximadamente, 75% da energia elétrica do Rio Grande do Sul provêm de hidrelétricas (mais de 5 mil MW), em quase 50 empreendimentos. Cerca de 70% são formados por Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCHs, que produzem até 30 MW. Algumas hidrelétricas são compartilhadas com o Estado de Santa Catarina e localizam-se no Rio Pelotas-Uruguai. A usina hidrelétrica (UHE) de Itá, que fica entre Aratiba (RS) e Itá (SC), é a maior de todas, gerando mais de 1.300 MW. O Rio Grande do Sul teve, até quinze anos atrás, sua energia elétrica baseada principalmente nas hidrelétricas da bacia Rio Jacuí. Agora a fronteira da hidroenergia se desloca, sem parar, para a bacia dos rios Uruguai e Taquari. No caso do rio Pelotas-Uruguai, que estamos acompanhando mais de perto, existem já quatro grandes hidrelétricas, em colar, no eixo do rio (Foz do Chapecó, Itá, Machadinho e Barra Grande). Sem falar em outras da mesma bacia que se localizam no Rio Canoas (SC), ou seja, Campos Novos, que opera há alguns anos, e Garibaldi, que recém recebeu licenças ambientais. Agora desejam liberar mais uma, a UHE de Pai Querê, colada à montante de Barra Grande.
IHU On-Line - Qual a real necessidade de cada uma delas?
Paulo Brack - Depende do modelo de desenvolvimento a que estamos nos referindo. A produção energética, no modelo atual, visa prioritariamente o crescimento econômico e a concentração, a reboque, do consumo desenfreado, principalmente do primeiro mundo. O setor elétrico, hoje, é dominado por grandes empresas privadas, algumas multinacionais do setor eletrointensivo de exportação de produtos com baixíssimo valor agregado (minérios de ferro, alumínio, cimento etc.). Estas questões são levantadas principalmente pelo professor Dr. Célio Bermann, do Programa de Pós-Graduação em Energia da USP, e pelo Dr. Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA. Eles afirmam que o benefício desta geração não é, necessariamente, para o povo brasileiro.
Além disso, Bermann destaca que poderíamos aumentar a eficiência energética no Brasil com o uso mais racional, e com a repotencialização das hidrelétricas já construídas, o que representaria um ganho de mais de 30% do gasto atual.
Fearnside, por sua vez, demonstra que a matéria morta no fundo dos reservatórios das hidrelétricas é responsável pela emissão de muita quantidade de metano e gás carbônico, que são os principais gases relacionados ao efeito estufa e ao aquecimento climático global. No modelo atual brasileiro, após 1998, temos a maior parte da produção de energia concedida a empresas privadas, o que favorece a visão de mercado na área. Ou seja, torna-se interessante ao mercado o uso de 100% dos nossos rios para a produção energética com ganhos econômicos a empresas, em parte estrangeiras. A ANEEL faz leilões de energia, emite concessões, o que significa também leiloar nossos rios. Infelizmente, acaba não interessando a este modelo o uso mais racional da energia e as questões socioambientais. Neste modelo não são contabilizados os verdadeiros impactos ou prejuízos, que são muitos, e, assim, a hidreletricidade torna-se mais “barata” e mais “competitiva” do que a energia solar e a eólica, que representam menor impacto. 
IHU On-Line - Quem mais sofre as consequências das hidrelétricas no Rio Grande do Sul?
Paulo Brack - Dezenas de milhares de famílias foram e continuam sendo desalojadas no estado e, inclusive, daí surgiu em parte o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), a partir da última década de 1970. No Brasil, segundo o relatório da Comissão Mundial de Barragens , que admite entre 40 a 80 milhões de pessoas diretamente afetadas, e pelas estimativas do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB  já teríamos, até hoje, mais de um milhão de pessoas expulsas de suas terras. Os planos decenais da Empresa de Pesquisas Energéticas – EPE do Ministério de Minas e Energia prevêem outras cem mil pessoas, obrigatoriamente, desalojadas. Neste valor, pelo menos 15% seriam povos indígenas.
No Rio Grande do Sul, se forem incluídos todos os projetos previstos de hidrelétricas (dez ou onze grandes hidrelétricas em série no Rio Uruguai), destacando-se a maior delas, a UHE Garabi (entre o Rio Grande do Sul e a Argentina), provavelmente teríamos mais de 50 mil pessoas afetadas. Isso é uma calamidade social.
No que se refere à biodiversidade, a catástrofe já está acontecendo, temos provas e vamos continuar a denunciar. Por exemplo, uma espécie de bromélia (dyckia brevifolia) do salto do Yucumã (Derrubadas, RS), abaixo das barragens do trecho do rio Uruguai, praticamente desapareceu e caminha para a extinção devido à alteração da vazão do rio. Estão destruindo também a biodiversidade da Zona Núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, patrimônio defendido pela Constituição, e as principais Áreas Prioritárias para a Conservação da Biodiversidade (Ministério de Minhas e Energias, 2007). Estes projetos foram concebidos lá no governo militar, em 1977, e praticamente não sofreram alterações, e agora ganham força com o modelo atual que compromete o futuro do planeta. Esta visão vem sendo adotada pelos últimos governos do Brasil, tanto pelos programas Avança Brasil como pelo Programa de Aceleração do Crescimento – PAC.
IHU On-Line - Quais os principais entraves ambientais e sociais provocados pela hidrelétrica de Pai Querê, no Rio Pelotas?
Paulo Brack - A palavra entrave talvez não seja a mais apropriada. Eu diria danos. Neste caso, decorrentes da então quinta hidrelétrica, colada às outras quatro referidas anteriormente. Ela atingiria em cheio a Zona Núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, patrimônio mundial pela Unesco.
O muro desta hidrelétrica teria 150 metros de altura, e transformaria a área em um lago de águas comprometidas pela decomposição da matéria vegetal morta, desaparecendo florestas e um rio límpido e cheio de corredeiras, com rica fauna e flora aquática que vive em condições de habitats muito particulares. Poderiam desaparecer mais de duas dezenas de espécies de peixes de rios caudalosos, destacando-se peixes do grupo dos cascudos, somando-se a isso a destruição de florestas com Araucária, das mais contínuas ainda existentes e em boas condições de conservação do sul do Brasil. Os dados do estudo de impacto ambiental, apresentados recentemente, confirmam que mais de quatro mil hectares de florestas sucumbiriam com esta obra.
Teríamos, por exemplo, a supressão ou morte por afogamento, como ocorreu em Barra Grande, de mais de cinco milhões de árvores (200 mil araucárias), o que corresponderia a três vezes a arborização urbana de Porto Alegre. Da mesma forma estão em situação crítica de ameaça de extinção outras dezenas de espécies da flora, identificadas no local, e várias espécies da fauna terrestre. Este é o caso do puma, da jaguatirica, do queixada (espécie de porco do mato restrito à área, no RS), do gavião-de-penacho, do urubu-rei, entre outros.
No que se refere à população humana, nem sempre os dados apresentados pelas empresas são confiáveis, mas o EIA-RIMA (estudo e relatório de impacto ambiental) dá conta de 334 famílias. EmBarra Grande, onde foram atingidas mais de 1200 famílias, o MAB admitiu que as empresas subestimaram o valor total.
Em geral as empresas não contabilizaram pessoas sem escrituras reconhecidas e os posseiros. As informações são disponibilizadas basicamente pelas empresas e o governo se baseia nelas, sem fazer uma checagem, pois isso requer vontade política e não interessa às metas do crescimento.
IHU On-Line - Como o senhor relaciona a hidrelétrica de Pai Querê e a de Barra Grande?
Paulo Brack - Barra Grande foi baseada em um estudo de impacto ambiental profundamente irregular, realizado pela empresa Engevix, uma das que mais constrói barragens no Brasil, o que gerou uma multa de 10 milhões de reais emitida pelo Ibama. A empresa recorreu, e passou incólume, como, em geral, acontece com as empreiteiras no Brasil. As irregularidades foram reconhecidas, além do Ministério de Meio Ambiente, pela justiça. Para dar permissão para a continuidade da obra, em setembro de 2004, foi elaborado um documento, chamado Termo de Compromisso (TC) de Barra Grande , assinado pelo governo, as empresas e a justiça, com alguns condicionantes, infelizmente não cumpridos até agora.
O dano de muitas hidrelétricas é irreparável. Em Barra Grande foram perdidos seis mil hectares de florestas, que representavam um corredor único entre a floresta do Alto Uruguai e a floresta com Araucárias. As imagens do Google Earth denotavam uma enorme mancha verde-escura que eu tive a oportunidade de ver, no local.
Em janeiro de 2005, fiquei surpreendido quando, na desembocadura do rio Vacas Gordas com orio Pelotas, deparei-me com uma das matas mais exuberantes que havia visto. Olhava para todos os lados e via só florestas, com um porte impressionante. Olhava para baixo e via águas cristalinas, correntes e rasas, povoadas de diferentes tipos de peixes de corredeiras. Uma série de plantas raríssimas e restritas àquelas condições. E sentia que isso tudo ia se acabar. Depois vi a beleza das corredeiras do Parque Municipal de Encanados, que era um cartão postal de Vacaria, ser condenada à morte. Não conseguia entender e também não tinha ideia de que em Pai Querêpoderia ser uma situação semelhante à de Barra Grande.
Outra desgraça premeditada, como parte de uma grande calamidade que ameaça de colapsar a biodiversidade da bacia do Rio Uruguai e transformá-lo em uma mera escada de lagos, fatiados por concessões a empresas que não param de crescer. Também não tinha a ideia de que a avalanche de hidrelétricas, concebidas há mais de 30 anos, apenas estava começando. A triste ironia deste processo é que a Camargo Corrêa, uma das proprietárias e empreiteiras responsáveis pela construção de Barra Grande, exibia no local da obra alguns cartazes, com sua certificação ambiental ISO 14.001 e placas que diziam “cuide do meio ambiente” e “preserve a flora e a fauna”.
E a BAESA, consórcio da obra, fez de conta que resgatou a vida da bromélia-dos-lajedos (dyckia distachya), abrindo clareiras na beira da barragem e tentando criar um ambiente artificial para que esta espécie ameaçada e endêmica do trecho do rio pudesse continuar vivendo. A bromélia até pode continuar fora de seu habitat, mas não se sabe por quanto tempo porque as populações devem ser numerosas e com variabilidade genética, o que não foi o caso. Este “privilégio” sequer atingiu outras tantas espécies restritas às condições descritas aqui, provavelmente em vias de extinção, fato que contraria o artigo 225 da Constituição Federal, que não permite que se coloquem em risco de extinção as espécies de nossa flora e fauna. Queremos que se defenda a lei, nem que seja o princípio da razoabilidade, pois o chamado desenvolvimento, agora, já é explicitamente insustentável. Queremos que as empresas e os governos responsáveis por isso tudo tenham que pagar na justiça e tenham o destino que a história lhes reserva.
IHU On-Line - Quais as principais irregularidades, contradições e questões que ficaram pendentes, depois de cinco anos de emissão da licença?
Paulo Brack - As pendências de Barra Grande foram várias. O governo federal não faz questão de cumpri-las, apesar de muitas tentativas de técnicos do Ministério do Meio Ambiente e do Ibama. A primeira, é que o TC de Barra Grande colocava a obrigatoriedade de uma avaliação ambiental estratégica ou integrada (AAI ) da bacia do Rio Uruguai, antes de dar continuidade ao licenciamento dos demais empreendimentos. Isso foi feito, às avessas, pelo Ministério de Minas e Energia.
Foi criado um documento, praticamente encomendado, pelo setor da produção de energia hidrelétrica, realizado por companhias consultoras que prestavam serviços às empresas hidrelétricas. Como era de se esperar, consideraram viáveis todos os empreendimentos previstos, agregando, porém, algumas mitigações. O Ministério do Meio Ambiente considerou o estudo inadequado e insuficiente, vindo a solicitar outro, que foi coordenado pelo prof. Dr. Rafael Cabral Cruz, daUnipampa, juntamente com pesquisadores da UFSM, chamado FRAG-RIO Uruguai.
Este estudo é de alto nível e responde, de forma inteligente, a este processo. Por exemplo, o estudo aponta que para se garantir a sobrevivência de peixes, como o dourado e o surubim, devem ser mantidos pelo menos 80 km de rio sem barramentos. Ou seja, o trabalho reforça a visão necessária de uma avaliação prévia global da bacia bem como a necessidade de trechos de rios livres de barramentos, levantando as grandes fragilidades socioambientais  de cada trecho, com destaque à área de Pai Querê. Estes itens deveriam estar, sempre, em primeiro lugar em relação às regras de mercado. Lamentavelmente, o estudo foi criticado de forma meramente política e sem critérios científicos pela senhora Márcia Camargo, assessora do Ministério de Minas e Energia e que estava afinada à ex-ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Resultado: por colocar em dúvida algumas obras do PAC, o estudo foi enfraquecido e, pelo menos temporariamente, deixado de lado.
Também foram afastados do processo de licenciamento, ou colocados na “geladeira”, alguns dos técnicos mais sérios do Ibama, que acompanhavam o projeto de Pai Querê. Em relação às outras pendências do TC, destacamos aqui a obrigatoriedade na criação do Corredor Ecológico do Rio Pelotas-Uruguai, que foi proposto por técnicos do Ministério do Meio Ambiente denominado comoRefúgio da Vida Silvestre do Rio Pelotas-Aparados da Serra. A ex-ministra da Casa Civil, o Ministro de Minas e Energia e o Presidente da República acabaram mandando engavetar a proposta até que seja garantida a emissão da licença ambiental para tocar adiante Pai Querê.
Quanto à área que deveria ser comprada para compensar o que se perdeu com Barra Grande(5.740 hectares), a BAESA depositou o valor em juízo, pois o Ibama não teve autorização do governo federal para definir que a área mais semelhante, e que deveria ser adquirida, seria justamente a área prevista para Pai Querê. E ficaram pendentes também os resultados do monitoramento da fauna e da flora bem como os programas para a garantia de sobrevivência das espécies ameaçadas. O MAB também reclama itens relativos ao não cumprimento de várias indenizações às famílias atingidas pela UHE de Barra Grande.
IHU On-Line - Como o senhor avalia, de forma geral, os estudos feitos antes da instalação de hidrelétricas no Rio Grande do Sul em relação ao impacto ambiental?
Paulo Brack - Apesar do esforço heróico de muitos técnicos do órgão federal (Ibama) - que analisa os trechos interestaduais ou o binacional do Rio Uruguai - e dos órgãos estaduais (FEPAM-SEMA e FATMA) - que analisam os rios exclusivos dos Estados - infelizmente, as licenças continuam sendo emitidas muito mais como uma decisão política do que com base em fundamentos técnicos e que deveriam respeitar os marcos legais da área ambiental. A ordem é atender as demandas econômicas mais imediatas. Existe uma “correia de transmissão”, de cima para baixo, a partir da cúpula dos governos, sobre a chefia do setor de licenciamento. O licenciamento continua sendo forçado a avaliar os empreendimentos de forma isolada, caso a caso, e acaba entrando numa lógica esquizofrênica que consolida a maneira de atender, simplesmente, os ditames dos projetos governamentais e os interesses das empresas. O que vai se perder em biodiversidade parece não interessar mais. Os estudos de impacto consagram-se como uma grande formalidade, tremendamente tendenciosos e de baixo nível técnico, servindo apenas para assegurar a emissão de licenças. É um escândalo, que ninguém mais nega e acaba se tornando fato consumado.
IHU On-Line - Como o senhor avalia a condução do Ibama em relação às hidrelétricas no Estado?
Paulo Brack - O Ibama no Rio Grande do Sul tem uma equipe que se pauta por alta seriedade e cumprimento da lei. Conheço alguns técnicos do órgão e reconheço o grande esforço dos mesmos para fazer com que existam razoabilidade e ponderação de equilíbrio no processo de licenciamento. Porém, estão na mira do governo e a desmotivação e a desvalorização são evidentes. O desprestígio pode ser ilustrado quando o presidente da República, em mais de uma oportunidade, criticou  o que atribui como um “excesso de zelo”, por exemplo, “com as pererecas”  (BR 101) e “bagres”  (Hidrelétricas do rio Madeira). O Ministério Público, o Tribunal de Contas e as ONGs também são alvos permanentes da crítica sistemática do poder Executivo, na área ambiental. Existe um superpoder explícito dos chefes dos executivos. Estes se colocam, muitas vezes, acima da Constituição, das leis e do poder Judiciário. Desestruturam o órgão ambiental, de forma deliberada.
A forma truculenta de se levar as obras do PAC, da infraestrutura pesada, enfraquece os órgãos ambientais, o que eu considero um esquema já coordenado, que deve ser combatido, urgentemente. Chegamos a ponto em que os técnicos dos órgãos ambientais são alvo indiscriminado de assédio moral por parte dos dirigentes políticos, nos âmbitos federal, estadual e municipal, e fica por isso mesmo... Acabo recebendo queixas frequentes por parte de técnicos dos órgãos ambientais das três esferas de Estado que vivem, cotidianamente, esta pressão psicológica, talvez, por eu ser membro do Conselho Estadual de Meio Ambiente  CONSEMA do Rio Grande do Sul e por fazer parte de uma ONG muito atuante, o INGÁ. Porém a gente, em geral, não tem provas e os técnicos têm medo de denunciar. Isso é revoltante. Os critérios técnicos tornam-se letra morta e o órgão ambiental transforma-se em um setor de mera chancela e de subserviência aos interesses puramente políticos e econômicos, como ocorria há algumas décadas.
Consagra-se a visão de que os rios e a natureza como um todo são também mercadorias. Existe uma reação em cadeia de desmoronamento da estrutura de Estado no que se refere à proteção ambiental. Um retrocesso de décadas. É uma guerra pelo crescimento econômico, e a qualquer preço. Isso se reflete em uma verdadeira guerra contra a própria natureza. Tal situação se aprofunda na época pré-eleitoral, inclusive porque muitas empresas, que fazem parte deste esquema imediatista, são doadoras de campanhas milionárias aos grandes partidos e a candidatos alinhados a esses governos. Isso é abominável.
IHU On-Line - Como o senhor avalia o tratamento dado pelo Ministério do Meio Ambiente às hidrelétricas no Rio Grande do Sul?
Paulo Brack - Tivemos a oportunidade de conversar com a atual ministra Izabella Teixeira, quando era secretária executiva do então ministro Minc, no final de 2008. Apesar de ela concordar com muitas de nossas ponderações, deu para sentir que estava sendo pressionada a continuar esse processo político de liberação célere e indiscriminado de empreendimentos no Brasil, para não afetar o núcleo do governo que tocava o PAC. Também tivemos um contato bem produtivo com técnicos do Ministério do Meio Ambiente, em Brasília, tratando destas questões. Inclusive, em 2005, conversamos com o ex-diretor de licenciamento do Ibama, Nilvo Silva, que tentou levar para o setor uma forma mais inteligente de avaliação ambiental estratégica das bacias, desenvolvida aqui daFepam, quando em 2001 ele presidia o órgão. O método de análise facilitaria a avaliação posterior de cada empreendimento. Entretanto, a tecnocracia economicista odeia a inteligência e a razoabilidade na área ambiental. Ele foi forçado a se demitir e ir para o Quênia, representando o Brasil no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD.
O outro diretor de licenciamento, que ficou em seu lugar, o também gaúcho, Luis Felippe Kunz Jr., foi demitido pelos mesmos motivos. O que chama mais atenção é que foi na gestão de Marina Silva, em 2007. Este diretor, corretamente, estava defendendo o ponto de vista dos técnicos do Ibamaque queriam mais tempo para decidir a licença para as hidrelétricas do rio Madeira (Jirau e Sto. Antônio), em Rondônia, porque os dados denotavam grande impacto, principalmente em erosão e sedimentação no rio, e muitos riscos e incógnitas. Este é o quadro que ninguém mais pode negar. E, para finalizar, um dos técnicos do Ministério do Meio Ambiente me confessou que acredita que todos os argumentos mais legítimos na área ambiental não sensibilizam mais o governo federal ou os demais governos. O que poderia funcionar, segundo ele, era darmos muita visibilidade ao tema (manifestações), e recorrermos à lei, via Ministério Público.
IHU On-Line - Quais as consequências da ocupação de hidrelétricas para a bacia do Rio Uruguai?
Paulo Brack - O Rio Uruguai desapareceria como rio. O governo federal não fala disso, mas a construção de mais de dez hidrelétricas coladas desde oeste, São Borja (34 metros acima do mar) até o leste, São José dos Ausentes (900 m.a.m.) condenaria o rio à morte. Até agora mais de 30 mil pessoas foram afetadas pelas barragens já construídas, e outro número igual ou maior pode sofrer estes danos. As pessoas que perdem suas terras, o seu chão, podem ter transtornos e entrar numa espiral depressiva para o resto da vida.
Além disso, com a avalanche de hidrelétricas que nos querem impor, provavelmente centenas de espécies poderiam ser extintas, mesmo que isso leve alguns anos ou décadas. Mas o processo está em curso. Os índices de extinção mundial de espécies por ano (27 mil) já são mil vezes maiores que os naturais, segundo Edward Wilson. Com as hidrelétricas isso seria muito trágico.
Tenho enorme carinho pelo Rio Pelotas e o Rio Uruguai e prezo pela cultura dos gaúchos que contam e cantam a história da região. No norte do Estado, o Rio Uruguai se confunde com a história dos missioneiros  e do Caminho das Tropas , no Rio Pelotas. É uma bela paisagem que está lá há milhares de anos. Meus pais me ensinaram a amar a natureza e respeitar todas as formas de vida. E tento passar isso para meus filhos, meus alunos e outras pessoas. Creio que muitos de nós, gaúchos, prezamos por tudo isso e nos emocionamos também com as músicas  de Cenair Maicá, Noel Guarani e Pedro Ortaça que cantam as belezas do Rio Uruguai, das corredeiras, das florestas e da gente que povoa a beira deste nosso maior rio do Estado. Eu não quero acreditar que este desastre da morte do Rio Pelotas-Uruguai possa acontecer. É impossível acreditar que ninguém vai fazer nada para interromper esta insanidade. 





"BABY BOOMER", COM ORGULHO!

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