Quando falamos de
Democracia, sempre inflectimos nosso pensamento para a liberdade total, o campo
onde ocorrem os debates e as boas ideias, aquilo que é importante para o País,
superam as divergências e obtemos o melhor resultado para a Nação. Mas o cenário
contemporâneo brasileiro mostra que não é bem assim, pois, quando um grupo
raivoso e despreparado à dialética, tenta resgatar princípios anacrônicos e,
portanto, já superados pela experiência dolorosa dos povos, para governar
ininterruptamente, implantando modos e modelos de governo arrogantes,
assistencialistas, messiânicos e patrimonialistas, a Democracia, então, deixa
de existir na plenitude.
Os atos e as
iniciativas, já postas no papel dos projetos, ou, pelo menos, já ensaiados na
retórica maliciosa dos bastidores políticos, dá-nos um perfil assustador,
especialmente se o contextualizamos no cenário geopolítico regional da América
do Sul.
O texto abaixo, de
Ferreira Gullar, para o jornal Folha de São Paulo, traça com fidelidade como
isto ocorre.
Boa leitura!
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Ditadura da maioria
FERREIRA GULLAR, PARA O JORNAL FOLHA
DE SÃO PAULO
O populismo petista demonstra inconformismo com normas que o
impedem de fazer o que queira
Não faz muito tempo, ouvi um deputado afirmar que o que define
um governo democrático é a eleição. Se foi eleito, é democrático.
Todos sabemos que não é bem assim, pois, conforme a força que
tenha sobre as instituições, pode um governo impor sua vontade e anular o
direito dos adversários. A eleição é, sem dúvida, uma condição necessária para
que se constitua um governo democrático, mas não é suficiente.
Se abordo esta questão aqui é porque vejo naquela simplificação
uma ameaça à democracia, fenômeno crescente em vários países da América Latina
e até mesmo no Brasil. Na verdade, essa é uma das manifestações
antidemocráticas do neopopulismo, hoje hegemônico em alguns países
latino-americanos.
Já defini esse novo populismo como o caminho que tomou certa
esquerda radical, ao constatar a inviabilidade de seus propósitos ditos
revolucionários. Não se trata mais de opor a classe operária à burguesia, mas
de opor os pobres aos ricos.
O populismo age correta e legitimamente quando busca melhorar as
condições de vida dos setores mais carentes da sociedade, o que lhe permite
conquistar uma ampla base eleitoral. Mas se torna uma ameaça à democracia
quando usa esse poder político para calar a voz dos opositores e, desse modo,
eternizar-se no poder.
Exemplo disso foi o governo de Hugo Chávez na Venezuela. O
domínio dos diferentes poderes do Estado permitiu ao chavismo manter-se no
governo mesmo após a morte de seu líder, violando abertamente todas as normas
constitucionais. Essa tese de que basta ter sido eleito para ser um governo
democrático é conveniente ao populismo porque, contando com o apoio da maioria
da população, usa-o como um aval para fazer o que quiser.
Está implícita nessa atitude uma espécie de sofisma, segundo o
qual, se o povo é dono do poder, quem contraria sua vontade é que atenta contra
a democracia. E quem sabe o que o povo quer é o caudilho.
Sucede que o governante eleito, como todos os demais cidadãos,
está sujeito às leis, que estabelecem limites à ação de qualquer um, inclusive
dos governantes. Não por acaso, todos eles, ao tomarem posse depois de eleitos,
juram obedecer e seguir as normas constitucionais.
No Brasil agora mesmo, o populismo petista demonstra
inconformismo com essas normas que o impedem de fazer o que queira. A
condenação dos corruptos do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal levou-os a
tentar desqualificar aquela corte de Justiça, acusando-a de ter realizado um
julgamento político e não jurídico.
Como tais alegações não têm fundamento nem dificilmente mudariam
a decisão tomada, resolveram alterar a Constituição para de algum modo anular a
autonomia do STF.
Por iniciativa de um deputado petista, foi aprovada pela
Comissão de Constituição e Justiça da Câmara uma emenda constitucional que
resultaria em submeter decisões do Supremo Tribunal à aprovação do Congresso,
numa flagrante violação da autonomia dos poderes da República, base do regime
democrático.
Essa iniciativa provocou revolta nos mais diversos setores da
opinião pública e até mesmo a Presidência da República, por meio do
vice-presidente Michel Temer, procurou desautorizá-la. Não obstante, os
presidentes da Câmara e do Senado manifestaram seu descontentamento a supostas
intervenções do STF nas decisões do Congresso.
Com o mesmo propósito, tenta-se excluir do Ministério Público a
atribuição de investigar e processar os responsáveis por crimes na área
pública.
É que o populismo não tolera nada que lhe imponha limites e o
critique. Por isso mesmo, um de seus inimigos naturais é a imprensa livre, de
que a opinião divergente dispõe para se fazer ouvir.
Na Argentina, o populismo de Cristina Kirchner estatizou a única
empresa que fornece papel aos jornais do país, o que significa uma ameaça a
todo e qualquer jornal que se atreva a criticar-lhe as decisões além do que ela
permita.
Quando consuma seus objetivos, o populismo estabelece o que
ficou conhecido como a ditadura da maioria. Denominação, aliás, pouco
apropriada, já que, nestes casos, o poder é, de fato, exercido por um líder
carismático, a quem a maioria do povo segue cegamente.
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