FALTA DE VONTADE?


Os brasileiros reclamamos da corrupção, dos desmandos fisiológicos dos políticos, do patrimonialismo governamental, do messianismo de alguns líderes, enfim, mostramos não estar satisfeitos com muitas coisas que ocorrem por aqui. Como somos eleitores, numa sociedade simplória, não sabemos pressionar nossos eleitos para que atuem e se manifestem de forma condizente com a situação de calamidade das Instituições Nacionais. 
Vivenciamos há poucos anos o famigerado MENSALÃO e, agora, com relações inequívocas àquele triste episódio, comandado por quadrilha especializada, enfrentamos o caso CACHOEIRA.
Pessoalmente, devo reconhecer que a imprensa tem um papel relevante ao desvendar esses e outros casos, deixando a presidente a reboque da mídia, ao tomar decisões extirpadoras dos nomes envolvidos, pautada por jornais e revistas, mas não posso deixar de criticar essa mesma imprensa denunciante que, no auge do processo investigador, emite capas de revistas semanais com frivolidades como "pílulas de beleza", "comparativo estético entre gordos e magros" e "como desenvolver trabalhos manuais", dando um quê de desimportância a fatos relevantes para a sociedade brasileira.
Fico, então, pensando se não nos julgam idiotas!




ASSIMETRIAS GOVERNAMENTAIS


Os paroleiros oficiais se esforçaram na explicação no inexplicável, mas caíram no ridículo, pois para cada argumento exposto por eles  há o contraditório irretorquível. A simetria dos posicionamentos pessoais ou oficiais é que dá credibilidade às pessoas e às instituições. Sem isto, esses dirigentes, eleitos por um povo crédulo e ordeiro, posam de falastrões, balabregas, dissimulados e canalhas para a História.
Abaixo um texto densamente inquisidor e demonstrativo das incoerências que ocorrem nas ações dos nossos governantes, publicado pelo Instituto Millenium.
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Por que a presidente circula em carrão importado?
Autor: Carlos Alberto Sardenberg

  

Por que não um modelo com mais conteúdo nacional, movido a etanol?
A presidente Dilma acredita que, com o aumento “extraordinário” de importação de carros, está em curso “uma tentativa de canibalização” do mercado brasileiro.
Não explicou o que entende por “canibalização”, mas ela mesma dá um exemplo de como e por que ocorrem as importações. A presidente circula em um Omega blindado, produzido pela General Motors na Austrália e importado pela GM brasileira.
Também se incluem na frota presidencial carros Ford Fusion, fabricados no México e importados pela mesma montadora. Entre os Fords, aliás, há um híbrido – movido a dois motores, um convencional, a gasolina, e outro elétrico. Trata-se da aposta da companhia para a era dos veículos mais amigáveis com o meio ambiente.
Daí, duas perguntas: 1) por que o Ômega? E, 2) por que não um veículo movido a etanol, a aposta ambiental brasileira?
Para a primeira questão, explica o Gabinete de Segurança Institucional (GSI): “(esse carro) atende, em melhores condições, os requisitos técnicos estabelecidos para garantir a segurança presidencial”. Acrescenta: “Tais requisitos não são preenchidos por nenhum produto de fabricação nacional.”
Ora, por que as montadoras aqui instaladas – que formam a indústria nacional protegida pelas medidas do governo – não fabricam esses carros de maior qualidade e conteúdo tecnológico?
Elas produzem aqui os modelos populares, básicos e alguns médios. Na Argentina, os médios, já de maior valor agregado. Os carrões são fabricados em diversos outros países, desenvolvidos, como Austrália e Alemanha, e mesmo emergentes, como o México, por exemplo, de onde podem ser importados para o Brasil livres de impostos, conforme o acordo firmado entre os dois países há dez anos.
A indústria local continua, pois, superprotegida. E o consumidor paga a conta.
Esse foi o arranjo que as multinacionais organizaram para sua produção global. Vai daí que as grandes importadoras de carros (e peças) são também as grandes produtoras nacionais.
Estariam essas montadoras canibalizando seu próprio mercado interno? Não faria lógica, não é mesmo? Elas importam os carros que não querem ou não conseguem produzir aqui com qualidade e preço internacional. Resumindo, a Ford mexicana é mais eficiente que a brasileira. Idem para a GM australiana em relação à local.
Cresceu no último ano a importação de carros chineses e coreanos de marcas sem fábricas no Brasil. Esses veículos impuseram forte concorrência em algumas faixas ocupadas pelas montadoras locais. Mas o volume dessas importações nem chega a arranhar o mercado brasileiro – 3,5 milhões de veículos/ano, o quarto ou quinto no mundo – muito menos canibalizar.
Do ponto de vista macro, não há como atender um mercado de 3,5 milhões preferencialmente com importações. As montadoras precisam se estabelecer e produzir aqui, o que estão fazendo. A questão é: o que vão fabricar? A que preço?
O regime automotivo anunciado nesta terça pela presidente exige que os carros aqui produzidos tenham mais conteúdo nacional, que as empresas gastem mais com engenharia e pesquisa, mas não exige que se fabriquem aqui os “carrões”. As montadoras (e o governo) sabem que, nas condições estruturais da economia brasileira, não haveria como cumprir essa regra.
A indústria local continua, pois, superprotegida. E o consumidor paga a conta. O imposto bem mais elevado cobrado sobre chineses e coreanos eleva seus preços e alivia a concorrência que faziam com básicos nacionais. As quotas sobre os importados do México reduzem a oferta e, pois, aumentam os preços.
Resultado: o carro local, que já é mais caro do que em qualquer outro lugar do mundo, tende a ficar mais caro ainda. E continuamos a importar os carrões, inclusive os coreanos, também mais caros.
Assim, quando a Presidência renovar sua frota de importados, também pagará mais caro – a menos, claro, que as montadoras façam algum tipo de gentileza, o que, aliás, não seria ético.
Mas, se o espírito é genuinamente nacionalista, se estamos sendo atacados por práticas predatórias estrangeiras, como Dilma e Mantega repetem todos os dias, por que a Presidência não nacionaliza sua frota? O último pacote reforçou a regra pela qual o governo, nas suas compras, deve dar preferência ao nacional mesmo quando este for até 25% mais caro que o importado.
Logo, vendam os Ômegas e Fusions e comprem os modelos com mais conteúdo nacional, todos movidos a etanol.
Não é provocação. Trata-se apenas de ilustrar o equívoco da política industrial. Suponha que o governo nacionalize mesmo toda sua frota, o que aconteceria? As autoridades, incluindo a presidente, circulariam em carros, digamos, mais modestos e menos seguros, e a indústria nacional continuaria produzindo… as mesmas carroças de sempre, quer dizer, os tais carros sem “os requisitos técnicos estabelecidos para garantir a segurança presidencial”. E, acrescentaríamos, sem o conforto que merecem as autoridades.


DEMÓSTENES, O GREGO


Em tempos de pessoas dissimuladas, nada mais adequado do que resgatar fatos históricos para estabelecer comparativos e ver como os comportamentos humanos se repetem, embora separados por milênios. Enquanto mantemos a esperança de que a humanidade aprenda com seus erros e defeitos, estabelecendo avanços na escada do aperfeiçoamento, muitas vezes vemos a retrocessão comportamental e, aí, então, começamos tudo novamente. É este o momento que vivenciamos.

O artigo abaixo, publicado pelo Instituto Humanitas UNISINOS, é pertinente por registrar este dilema que fustiga o processo evolutivo do Homem.

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Demóstenes.

Artigo de Roberto Romano

 

Hérmias foi um político afortunado, mas caído em desgraça por trair o rei da Pérsia em favor de Felipe II da Macedônia, pai de Alexandre Magno. Demóstenes, inimigo de Felipe e do soberano persa, aproveitou a deixa e, no parlamento de Atenas, denunciou as vilanias de Hérmias. Escutemos o discurso do bravo Demóstenes: "O agente e cúmplice de Filipe (...), durante a ação que Filipe prepara contra o Grande Rei (persa), foi finalmente preso. Assim, o Grande Rei virá a conhecer toda a trama e não através de nossas acusações, que poderiam parecer geradas pelos nossos interesses particulares, mas diretamente através do principal artífice executor" (Demóstenes, Quarta Filípica, 10).


A prisão de Hérmias ocorreu na luta pelo controle de Bizâncio. Ele foi torturado segundo as técnicas habituais. Impressiona, no discurso do insigne Demóstenes, o silêncio sobre o jeito como o soberano persa encontrou a "verdade". Como diz Luciano Canfora, o retor grego "tinha plena consciência dos 'métodos' com que o rei da Pérsia arrancava a verdade de suas vítimas". Demóstenes sabia ser valente nas bravatas, pisoteando a desgraça de um adversário fraco (Um Ofício Perigoso, Editora Perspectiva).

O mais vil em Demóstenes não é a sua bravata. Ele sabia de antemão, como indica ainda Luciano Canfora, o conteúdo das confissões que seriam arrancadas de Hérmias, pois tinha espiões entre os inimigos. O pior fato, calado pelo político na sua arenga aos parlamentares, é que ele mesmo, o bravo perseguidor de corruptos, era um corrompido: seu nome estava no livro-caixa do "Grande Rei". O fato foi descoberto quando Alexandre, sucessor de Felipe, abriu os arquivos persas após sua vitória. Canfora indica o passo de Plutarco (Vida de Demóstenes, 20), mas não cita o que diz o filósofo sobre o nosso herói de reputação ilibada.

Escutemos: "Demóstenes era homem em quem não se poderia muito confiar no campo das armas, nem era ele muito prevenido contra a corrupção dos presentes e doações; pois, embora fosse impossível que Felipe o conquistasse, ele, no entanto, se deixava comprar a preço do ouro e da prata que vinham de Susa e de Ectabane. Disposto a louvar os belos e gloriosos feitos de seus velhos ancestrais, ele não seguia ou imitava seus exemplos". Susa, Ectabane e Babilônia eram cidades nucleares da Pérsia antiga... Plutarco, mestre da ética ocidental, com poucos vocábulos diz tudo sobre o duplo lado de um parlamentar oficialmente impoluto.

Uma prática nefanda, sempre em voga na vida política desde os tempos gregos, é a técnica do desmascaramento alheio para preservar a própria face. A máscara, que todo ser humano usa para guardar os próprios segredos, serve como arma de proteção e ataque. Todo indivíduo maneja a própria máscara e, "como ator, nela se transforma" (Elias Canetti, O Personagem e a Máscara). Quem pretende desmascarar os semelhantes deles retira a defesa e o possível ataque no mundo social. Desmascarar é cobrir o rosto com uma outra máscara, a de assassino da vida moral alheia. O pior inimigo de qualquer sociedade é o desmascarador, o Demóstenes que lateja em todo poderoso.

Raros parlamentares, na História ocidental, podem estar seguros de que o livro-caixa, espelho que revela o seu verdadeiro semblante, jamais virá à luz diurna. Douto e ardiloso, Bismarck, o chanceler de ferro: "Ah, se as pessoas soubessem como são feitas as salsichas... e as leis!"

O desmascarador pode ser movido por vários motivos: o ressentimento, a inveja, o ódio sectário, a concorrência infeliz, as desilusões financeiras, amorosas, etc. Não raro, ele é movido por algo que, em outro tratado de Plutarco, se designa como kakourgia, o erotismo de ver o mal que se abate sobre os demais. Na língua alemã existe o termo Schadenfreude, alegria com a tristeza do próximo.

Quando se diz que alguém finge ser honrado como os varões de Plutarco, não se tem ideia exata do pretendido por ele em suas biografias de indivíduos ilustres. Cada herói grego tem ali o contraponto de uma personalidade romana. Tal forma estilística serve para analisar os personagens em perspectiva, comparando virtudes e defeitos dos retratados. Não existe grego ou romano absolutamente puro. Fino observador ético, Plutarco mostra os erros dos generais, políticos, pensadores, sobretudo o seu excesso de virtude transformado em vício. O conceito filosófico para designar tal inchaço é hybris, orgulho sem medida, usado nas tragédias atenienses. Na Ética de Spinoza, o mesmo conceito recebe um nome exato, existimatio: a ideia de si mesmo que tem o soberbo, julgando estar acima dos demais. O soberbo imagina ser lícito desprezar, caçoar, humilhar os fracos e "inferiores". O desmascarador é atacado pela hybris (na religião cristã, o pai da mentira, Lúcifer, é soberbo) e se compraz em sua almejada preeminência sobre os semelhantes.

Ainda Spinoza, no Tratado Político, aponta os intelectuais como ícones da soberba. "Os filósofos concebem as afecções que lutam em nós como vícios nos quais os homens caem por sua falta. Por tal motivo eles se habituaram a ridicularizar e deplorar tais afecções e, mesmo, as detestar se desejam parecer mais imbuídos de moral. Acreditam agir divinamente, elevados ao cume da sabedoria ao elogiar, entusiastas, uma natureza humana inexistente, invectivando em discursos a que existe na realidade". Seguidor de Maquiavel, ele arremata dizendo que os políticos não possuem tal soberba, embora vivam construindo armadilhas para os seus iguais e para os governados. Quando um político assume a máscara do moralista para destruir os seus pares, trata-se de astúcia imprudente. Pois a pedra colocada por ele na trilha dos outros, com muita probabilidade, o fará tropeçar. Afinal, todo livro-caixa oculto, cedo ou tarde, pode ser aberto.


RACIALIZAÇÃO DO BRASIL (II)


Esta semana, acompanhamos a conclusão do julgamento promovido pelo STF acerca das cotas raciais para ingresso em universidades. Por ser contrário a tal procedimento iniciado há 9 anos e, consequentemente, discordando da decisão do Supremo Tribunal, trago à leitura dois textos.
No primeiro deles, a autora, também, criadora do sítio “Contra a Racialização do Brasil”, faz um comparativo imaginário entre uma antiga lenda e a proposta de separação de raças no Brasil. Discordo algo dela, pois a proposta de padronização que ela pretende com a repercussão da lenda de Procrusto, violenta,  não é adequada à sociedade brasileira, pautada pela bonomia. Apesar disso, o texto é importante para situarmos qual é o verdadeiro problema do distanciamento de algumas camadas da população aos sistemas públicos ofertados.
No segundo, e para quem não tem acesso ao jornal, trago o Editorial do jornal Folha de São Paulo, de 27/04/2012, dia seguinte ao julgamento do STF. É importante conhecê-lo para que possamos sentir o quanto foi enviesado o resultado unânime daquela Corte.

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Primeiro Texto

As cotas raciais e o Leito de Procrusto

Para o INSTITUTO MILLENIUM, em 25 de abril de 2012
Autora: Roberta Fragoso Kaufmann

  
Na mitologia grega, conta-se a história de Procrusto, famoso ladrão que além de surrupiar os transeuntes que passavam em seu território, submetiam-nos a um tratamento cruel e degradante: a necessidade de enquadrá-los em um leito de ferro, cortando-lhes a cabeça ou as pernas, acaso ultrapassassem a cama. A lenda de Procrusto é uma metáfora sobre a tentativa de padronização, ainda que lastreada apenas em artimanhas e em sortilégios.
E aqui estamos, em pleno século XXI, vivenciando as agruras da intolerância e da heteroidentificação pretendida por meio dos Tribunais Raciais. De composição secreta e com base em místicos critérios, são as “Comissões Raciais” quem vão estabelecer os rótulos identitários que irão acompanhar os candidatos às cotas raciais pelo resto de suas vidas.
Alguém poderia me ensinar qual é o limite exato entre um pardo e um branco no Brasil? Será que preciso andar com uma cartela de cores igual à das lojas de pintura para que esta definição seja precisa e possa fazer algum sentido? Em um país miscigenado desde a colonização, como o Brasil, a definição da mestiçagem revela-se completa loteria. Somos ao cabo todos mestiços e o que dantes era motivo de orgulho, momentaneamente parece ser a grande chaga e a prova do racismo no Brasil: a dificuldade de encaixar-se em meio às pretensas categorias raciais. Não por acaso, na única pesquisa de amostragem em que o entrevistado foi livre para dizer à que cor pertencia, o resultado em terras tupiniquins foram impressionantes 135 possibilidades, em uma mostra criativa que nem o Aurélio é capaz de reproduzir.
Não precisamos copiar um modelo que foi pensado para resolver o problema do racismo institucionalizado e praticado em outros países
Esta exposição se torna melancólica em relação ao nosso país quando se percebe que se a Corte Constitucional conceder o beneplácito à instituição das políticas de cotas raciais em Universidades, como é o caso hoje em julgamento, paulatinamente as cotas raciais serão estabelecidas em todos os setores sociais, como pretendido pela Secretaria de Igualdade Racial, beneficiando tão-somente uma casta de privilegidos de classe média e alta de negros que não seriam os mais necessitados da ajuda estatal. Consta do ideário de pleitos da referida Secretaria do Racismo Institucional a instituição de cotas raciais em partidos políticos, no mercado de trabalho, na publicidade e na propaganda, além de atendimento diferenciado no Sistema Único de Saúde e do estabelecimento de indenizações para cada descendente de escravo (?) no Brasil.
Em vez de observarmos o Brasil como exemplo para o mundo do século XXI, a partir do convívio harmônico entre brasileiros natos e imigrantes das mais diferentes culturas, religiões e cores, ativo absolutamente estratégico nesse século de tantos conflitos, pretende-se promover o dissenso e a divisão de nossa unidade nacional. As tentativas de racialização e de imposição de categorias estanques colocam em risco justamente o que temos de diferente – e de melhor – em relação aos outros países.
Nós não precisamos copiar um modelo que foi pensado para resolver o problema do racismo institucionalizado e praticado em outros países. Podemos ser criativos e elaborarmos um modelo próprio de ação afirmativa para a necessária integração dos negros carentes no Brasil. Cotas sociais, sim! Cotas raciais, não! Porque a pobreza, no Brasil, é a grande causa da segregação.

 

Segundo Texto

Cotas raciais, um erro

Editorial da Folha de São Paulo, 27/04/2012

O Supremo Tribunal Federal declarou as políticas de cotas raciais em universidades federais compatíveis com a Constituição. A decisão será saudada como um avanço, mas nem por isso terá sido menos equivocada.
Ninguém duvida que a escravidão foi uma catástrofe social cujos efeitos perniciosos ainda se propagam mais de um século após a Abolição. Descendentes de cativos -de origem africana ou nativa, pois também houve escravização de índios- sofrem, na maioria dos casos, uma desvantagem competitiva impingida desde o nascimento.
As políticas adotadas por universidades que reservam cotas ou garantem pontuação extra a candidatos originários daquela ascendência procuram reparar essa iniquidade histórica. A decisão do STF dará ensejo à disseminação de tais medidas em outras instâncias (acesso a empregos públicos, por exemplo), o que ressalta a relevância do julgamento.
São políticas corretivas que podem fazer sentido em países onde não houve miscigenação e as etnias se mantêm segregadas, preservando sua identidade aparente. Não é o caso do Brasil, cuja característica nacional foi a miscigenação maciça, seguramente a maior do planeta. Aqui é duvidosa, quando não impraticável, qualquer tentativa de estabelecer padrões de “pureza” racial.
Não se trata de negar a violência do processo demográfico ou o dissimulado racismo à brasileira que dele resultou, mas de ter em mente que a ampla gradação nas tonalidades de pele manteve esse sentimento destrutivo atrofiado, incapaz de se articular de forma ideológica ou política. Com a mentalidade das cotas raciais, importa-se dos Estados Unidos uma obsessão racial que nunca foi nossa.
No Brasil, a disparidade étnica se dissolve numa disparidade maior, que é social, uma sobreposta à outra. A serem adotadas políticas compensatórias, o que parece legítimo, deveriam pautar-se por um critério objetivo, alunos de escolas públicas, por exemplo, em vez de depender do arbítrio de tribunais raciais cuja instalação tem algo de sinistro.
A Constituição estipula que todos são iguais perante a lei. É um princípio abstrato; inúmeras exceções são admitidas se forem válidos os critérios para abri-las. A ninguém ocorreria impugnar, em nome daquele preceito constitucional, a dispensa de pagar Imposto de Renda para os que detêm poucos recursos.
O cerne da questão, portanto, consiste em definir se há justiça em tratar desigualmente as pessoas por causa do tom da pele ou se seria mais justo, no empenho de corrigir a mesma injustiça, tratá-las desigualmente em decorrência do conjunto de condições sociais que limitaram suas possibilidades de vida.




RACIALIZAÇÃO DO BRASIL (I)


Trago o texto abaixo, primeiro, por se referir a um assunto cujo princípio partilho. Em segundo lugar, por vê-lo como irrefutável na sua argumentação e, num terceiro momento, por admirar a sua contextualização, abrangendo um tempo passado e o atual de uma Nação que, apesar dos seus lamentáveis tropeços humanitários pelo mundo, indubitavelmente ajuda a formar práticas de defesa dos cidadãos. Embora sua escrita houvesse ocorrido três dias antes do julgamento do STF, tornando-se, pois, assunto vencido pelo lado legal, é importante sua leitura, já que o objeto da análise, e aprovação, judiciária, implica indelevelmente na formação da nacionalidade brasileira de hoje e de amanhã.
Lamento que tenhamos juízes que dedicaram seus tempos para preparar peças jurídicas para longas perorações, criticando a sociedade brasileira, sem preocupação com o desatino de estar gestando um processo de racialização brasileira.
Enfim, é isto que está definido pelo STF!


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Texto escrito em 23/04/2012 por IVONNE MAGGIE, antropóloga e professora titular da UFRJ, para o sítio Contra a Racialização do Brasil
Abrir o jornal e ver a foto de Barack Obama sentado em um ônibus antigo do sul dos EUA, olhando de lado pela janela, já produz emoção. Logo abaixo as imagens do mesmo veículo, há cinquenta anos atrás, e  de Rosa Parks, a americana que foi retirada do ônibus pela polícia e presa por se recusar a ceder o lugar a um homem branco, no Alabama, trazem recordações sobre  o estopim dos movimentos civis americanos que culminaram com a assinatura da Lei de Direitos Civis de 1964 e, um ano depois, a Lei de Direito ao Voto para os negros.
Andei em um ônibus parecido com este em 1961 no Tennessee, sul dos EUA e, desavisada, sentei-me no último banco. Não percebi que os passageiros se dividiam em brancos e negros – brancos na frente e negros atrás –, pois para mim, brasileiríssima, aos dezesseis anos, todos eram simplesmente pessoas. Senti muitos olhares estranhos na viagem de Nashville a Knoxville, uma cidade nas montanhas, sem atinar com o motivo. Quando paramos no meio da viagem, em uma lanchonete de beira de estrada, vi duas portas; em uma delas estava escrito colored only. Não percebi o significado daquele aviso e entrei pela porta reservada apenas às pessoas ditas negras. Lá dentro, no balcão, os  sucos e sanduíches servidos eram iguais para todos os passageiros, mas as pessoas mais escuras estavam de um lado e as mais claras do outro. Fiquei entre os mais escuros apesar dos meus cabelos longos e louros e minha pele clara. Só quando cheguei ao destino e me encontrei com minha irmã e meu cunhado americano, que lá viviam e me explicaram as regras, pude entender porque havia aquela porta e porque o ônibus era assim dividido. Os americanos do Sul viviam sob a lei Jim Crow. Os cidadãos não eram iguais diante da lei e negros não votavam. Moravam em bairros separados e eram tratados de modo diverso.
Dez anos mais tarde voltei aos EUA,  depois da Lei dos Direitos, promulgada em 1964. Nos ônibus não havia mais separação legal entre negros e brancos graças a Rosa Parks, mas os EUA continuavam cindidos racialmente. No Texas, em 1971, tive a exata noção do que significa viver em um país construído pela segregação legal.
Em Thirteen ways of looking at a black man, de Henry Louis Gates Junior, professor de Harvard, há uma história reveladora do que se passou depois da lei dos direitos. Neste livro, Harry Belafonte conta que alguns anos depois de 1964 fora convidado para fazer um filme. O produtor, muito animado, lhe dissera: “Harry, será maravilhoso, vamos fazer um filme dirigido e estrelado por negros, produzido por negros, com música feita por negros e vai ser belíssimo”. Ao que o ator, nervoso, respondeu: “Não quero fazer parte disso, passei tantos anos lutando para sair do gueto, não serei eu a me enfiar de novo nele”. Gates conta que durante a entrevista, após esta declaração de Harry, seguiu-se um silêncio constrangedor,  só quebrado com uma sonora gargalhada  do entrevistado e a seguinte frase: “Eu não aceitei a armadilha, mas é claro que Sidney Poitier aceitou e ficou rico estrelando todos aqueles filmes”.
No país da segregação racial e da lei Jim Crow cotas raciais foram consideradas inconstitucionais em 1978, no famoso caso Regents of the University of Califórnia versus Bakke (1978), e a decisão foi reafirmada em 2003, nos julgamentos envolvendo a Universidade de Michigan, Grutter versusBollinger et al. A Suprema Corte nos dois casos considerou inconstitucional a reserva de vagas para minorias em universidades. Em 2007,  novamente, a Corte Suprema americana se viu diante da mesma questão, desta vez a respeito  de crianças brancas que haviam sido preteridas em algumas escolas do distrito de Seattle que praticavam uma  política de discriminação positiva. A corte decidiu que a cor da pela não deveria mais ser usada para matricular crianças em uma escola ou outra, pois segundo a maioria dos juízes, obrigar os indivíduos a se definirem racialmente tinha o efeito de perpetuar a proeminência da “raça” na vida pública americana. Um dos juízes da Suprema Corte Americana foi além ao dizer: “Fazer com que a raça tenha existência agora para que não tenha no futuro fortalece os preconceitos que queremos extinguir”.
Diante da eminência do julgamento, dia 25 de abril, da constitucionalidade das cotas raciais na UnB pelo STF, penso que os juízes de nossa Corte Suprema devem levar a sério a posição majoritária na decisão da Corte em 2007. Muitos dos intelectuais que assinaram a Carta dos cento e treze cidadãos antirracistas contra as leis raciais, entregue ao Presidente do STF em abril de 2008 já disseram em várias ocasiões que, no Brasil, as cotas raciais não só consolidarão as categorias raciais, mas as farão literalmente existir.
O gesto de Rosa Parks em 1955 visava extinguir a diferença e a desigualdade legal entre brancos e negros nos EUA e acabar com o gueto. Vemos, porém, que até hoje os americanos se veem às voltas com a questão registrada por Harry Belafonte em 1960, porque não conseguem se livrar da terrível desgraça que lhes foi imposta pelos dominadores britânicos e perpetuada pelas leis até os anos 1950. A foto de Barack Obama naquele ônibus representa a necessidade de lembrar sempre dos heróis, anônimos ou não, que optaram por sair do gueto, não aceitá-lo jamais, nem que seja por força da discriminação positiva, ou afirmativa.
Os brasileiros que como eu, nos meus dezesseis anos e até hoje, não se veem e não foram legalmente divididos em brancos e negros, em sua grande maioria não aceitam as leis raciais. Mas quem os representa? Na audiência pública realizada em 2010 no STF a maioria dos convidados a se pronunciar era favorável às cotas raciais. Neste julgamento que se avizinha apenas duas vozes estarão defendendo a posição de Rosa Parks. A maioria quer reforçar a “raça” para depois extingui-la.  Nem sempre a posição majoritária prevalece nestas situações, mas neste caso temo pela sorte do povo brasileiro, que preferiu ao longo de séculos se pensar a partir da metáfora dos três rios que se juntam em um novo e caudaloso,  que não criou leis segregacionistas e não proibiu o casamento entre pessoas de cores diferentes. Será mesmo que estes juízes conhecem suficientemente a História para  decidirem sobre o destino de todos os brasileiros?

Obama no histórico ônibus em que Rosa Parks foi presa em 1955 por ter se recusado a dar o seu lugar para um homem branco. Foto Pete Souza/Casa Branca

O POLITICAMENTO CORRETO COMO FORMA DE CENSURA

A adoção do posicionamento POLITICAMENTE CORRETO vem sendo adotada pela esquerda mundial como forma sutil de dominação da sociedade, fazendo...