Trago o texto abaixo,
primeiro, por se referir a um assunto cujo princípio partilho. Em segundo
lugar, por vê-lo como irrefutável na sua argumentação e, num terceiro momento,
por admirar a sua contextualização, abrangendo um tempo passado e o atual de uma
Nação que, apesar dos seus lamentáveis tropeços humanitários pelo mundo,
indubitavelmente ajuda a formar práticas de defesa dos cidadãos. Embora sua
escrita houvesse ocorrido três dias antes do julgamento do STF, tornando-se,
pois, assunto vencido pelo lado legal, é importante sua leitura, já que o
objeto da análise, e aprovação, judiciária, implica indelevelmente na formação
da nacionalidade brasileira de hoje e de amanhã.
Lamento que tenhamos
juízes que dedicaram seus tempos para preparar peças jurídicas para longas
perorações, criticando a sociedade brasileira, sem preocupação com o desatino
de estar gestando um processo de racialização brasileira.
Enfim, é isto que está
definido pelo STF!
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Texto escrito em 23/04/2012 por IVONNE MAGGIE, antropóloga e
professora titular da UFRJ, para o sítio Contra a Racialização do Brasil
Abrir
o jornal e ver a foto de Barack Obama sentado em um ônibus antigo do sul dos
EUA, olhando de lado pela janela, já produz emoção. Logo abaixo as imagens do
mesmo veículo, há cinquenta anos atrás, e
de Rosa Parks, a americana que foi retirada do ônibus pela polícia e
presa por se recusar a ceder o lugar a um homem branco, no Alabama, trazem
recordações sobre o estopim dos movimentos civis americanos que
culminaram com a assinatura da Lei de Direitos Civis de 1964 e, um ano
depois, a Lei de Direito ao Voto para os negros.
Andei
em um ônibus parecido com este em 1961 no Tennessee, sul dos EUA e,
desavisada, sentei-me no último banco. Não percebi que os passageiros se
dividiam em brancos e negros – brancos na frente e negros atrás –, pois para
mim, brasileiríssima, aos dezesseis anos, todos eram simplesmente pessoas.
Senti muitos olhares estranhos na viagem de Nashville a Knoxville, uma cidade
nas montanhas, sem atinar com o motivo. Quando paramos no meio da viagem, em
uma lanchonete de beira de estrada, vi duas portas; em uma delas estava
escrito colored
only. Não percebi o significado daquele aviso e entrei pela porta
reservada apenas às pessoas ditas negras. Lá dentro, no balcão, os
sucos e sanduíches servidos eram iguais para todos os passageiros, mas
as pessoas mais escuras estavam de um lado e as mais claras do outro. Fiquei
entre os mais escuros apesar dos meus cabelos longos e louros e minha pele
clara. Só quando cheguei ao destino e me encontrei com minha irmã e meu
cunhado americano, que lá viviam e me explicaram as regras, pude entender
porque havia aquela porta e porque o ônibus era assim dividido. Os americanos
do Sul viviam sob a lei Jim Crow. Os cidadãos não eram iguais diante da lei e
negros não votavam. Moravam em bairros separados e eram tratados de modo
diverso.
Dez
anos mais tarde voltei aos EUA, depois da Lei dos Direitos, promulgada
em 1964. Nos ônibus não havia mais separação legal entre negros e brancos
graças a Rosa Parks, mas os EUA continuavam cindidos racialmente. No Texas,
em 1971, tive a exata noção do que significa viver em um país construído pela
segregação legal.
Em Thirteen ways of looking at a
black man, de Henry Louis Gates Junior, professor de Harvard, há
uma história reveladora do que se passou depois da lei dos direitos. Neste
livro, Harry Belafonte conta que alguns anos depois de 1964 fora convidado
para fazer um filme. O produtor, muito animado, lhe dissera: “Harry, será
maravilhoso, vamos fazer um filme dirigido e estrelado por negros, produzido
por negros, com música feita por negros e vai ser belíssimo”. Ao que o ator,
nervoso, respondeu: “Não quero fazer parte disso, passei tantos anos lutando
para sair do gueto, não serei eu a me enfiar de novo nele”. Gates conta que
durante a entrevista, após esta declaração de Harry, seguiu-se um silêncio
constrangedor, só quebrado com uma sonora gargalhada do
entrevistado e a seguinte frase: “Eu não aceitei a armadilha, mas é claro que
Sidney Poitier aceitou e ficou rico estrelando todos aqueles filmes”.
No
país da segregação racial e da lei Jim Crow cotas raciais foram consideradas
inconstitucionais em 1978, no famoso caso Regents of the University of
Califórnia versus
Bakke (1978), e a decisão foi reafirmada em 2003, nos julgamentos envolvendo
a Universidade de Michigan, Grutter versusBollinger
et al. A Suprema Corte nos dois casos considerou inconstitucional a reserva
de vagas para minorias em universidades. Em 2007, novamente, a Corte
Suprema americana se viu diante da mesma questão, desta vez a respeito
de crianças brancas que haviam sido preteridas em algumas escolas do
distrito de Seattle que praticavam uma política de discriminação
positiva. A corte decidiu que a cor da pela não deveria mais ser usada para
matricular crianças em uma escola ou outra, pois segundo a maioria dos
juízes, obrigar os indivíduos a se definirem racialmente tinha o efeito de
perpetuar a proeminência da “raça” na vida pública americana. Um dos juízes
da Suprema Corte Americana foi além ao dizer: “Fazer com que a raça tenha
existência agora para que não tenha no futuro fortalece os preconceitos que
queremos extinguir”.
Diante
da eminência do julgamento, dia 25 de abril, da constitucionalidade das cotas
raciais na UnB pelo STF, penso que os juízes de nossa Corte Suprema devem
levar a sério a posição majoritária na decisão da Corte em 2007. Muitos dos
intelectuais que assinaram a Carta
dos cento e treze cidadãos antirracistas contra as leis raciais,
entregue ao Presidente do STF em abril de 2008 já disseram em várias ocasiões
que, no Brasil, as cotas raciais não só consolidarão as categorias raciais,
mas as farão literalmente existir.
O
gesto de Rosa Parks em 1955 visava extinguir a diferença e a desigualdade
legal entre brancos e negros nos EUA e acabar com o gueto. Vemos, porém, que
até hoje os americanos se veem às voltas com a questão registrada por Harry
Belafonte em 1960, porque não conseguem se livrar da terrível desgraça que
lhes foi imposta pelos dominadores britânicos e perpetuada pelas leis até os
anos 1950. A foto de Barack Obama naquele ônibus representa a necessidade de
lembrar sempre dos heróis, anônimos ou não, que optaram por sair do gueto,
não aceitá-lo jamais, nem que seja por força da discriminação positiva, ou
afirmativa.
Os
brasileiros que como eu, nos meus dezesseis anos e até hoje, não se veem e
não foram legalmente divididos em brancos e negros, em sua grande maioria não
aceitam as leis raciais. Mas quem os representa? Na audiência pública
realizada em 2010 no STF a maioria dos convidados a se pronunciar era
favorável às cotas raciais. Neste julgamento que se avizinha apenas duas
vozes estarão defendendo a posição de Rosa Parks. A maioria quer reforçar a
“raça” para depois extingui-la. Nem sempre a posição majoritária
prevalece nestas situações, mas neste caso temo pela sorte do povo
brasileiro, que preferiu ao longo de séculos se pensar a partir da metáfora
dos três rios que se juntam em um novo e caudaloso, que não criou leis
segregacionistas e não proibiu o casamento entre pessoas de cores diferentes.
Será mesmo que estes juízes conhecem suficientemente a História para
decidirem sobre o destino de todos os brasileiros?
Obama no
histórico ônibus em que Rosa Parks foi presa em 1955 por ter se recusado a
dar o seu lugar para um homem branco. Foto Pete Souza/Casa
Branca
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