Em tempos de pessoas dissimuladas,
nada mais adequado do que resgatar fatos históricos para estabelecer
comparativos e ver como os comportamentos humanos se repetem, embora separados
por milênios. Enquanto mantemos a esperança de que a humanidade aprenda com
seus erros e defeitos, estabelecendo avanços na escada do aperfeiçoamento, muitas
vezes vemos a retrocessão comportamental e, aí, então, começamos tudo
novamente. É este o momento que vivenciamos.
O artigo abaixo,
publicado pelo Instituto Humanitas UNISINOS, é pertinente por registrar este
dilema que fustiga o processo evolutivo do Homem.
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Demóstenes.
Artigo de Roberto Romano
Hérmias foi um político
afortunado, mas caído em desgraça por trair o rei da Pérsia em favor de Felipe II da Macedônia, pai de Alexandre Magno. Demóstenes, inimigo de Felipe e do
soberano persa, aproveitou a deixa e, no parlamento de Atenas, denunciou as
vilanias de Hérmias. Escutemos o discurso
do bravo Demóstenes: "O agente e
cúmplice de Filipe (...), durante a ação que Filipe prepara contra o Grande Rei (persa), foi finalmente preso. Assim, o Grande Rei
virá a conhecer toda a trama e não através de nossas acusações, que poderiam
parecer geradas pelos nossos interesses particulares, mas diretamente através
do principal artífice executor" (Demóstenes, Quarta Filípica, 10).
A prisão de Hérmias ocorreu na luta pelo controle de Bizâncio. Ele foi torturado
segundo as técnicas habituais. Impressiona, no discurso do insigne Demóstenes, o silêncio sobre o
jeito como o soberano persa encontrou a "verdade". Como diz Luciano Canfora, o retor grego
"tinha plena consciência dos 'métodos' com que o rei da Pérsia arrancava a
verdade de suas vítimas". Demóstenes sabia ser valente nas bravatas, pisoteando a desgraça de um
adversário fraco (Um Ofício Perigoso, Editora Perspectiva).
O mais vil em Demóstenes não é a sua bravata. Ele sabia de antemão, como indica ainda Luciano Canfora, o conteúdo das
confissões que seriam arrancadas de Hérmias, pois tinha espiões
entre os inimigos. O pior fato, calado pelo político na sua arenga aos
parlamentares, é que ele mesmo, o bravo perseguidor de corruptos, era um
corrompido: seu nome estava no livro-caixa do "Grande Rei". O fato
foi descoberto quando Alexandre, sucessor de Felipe, abriu os arquivos persas após sua vitória. Canfora indica o passo de Plutarco (Vida de Demóstenes, 20), mas não cita o que diz o filósofo
sobre o nosso herói de reputação ilibada.
Escutemos: "Demóstenes era homem em quem não se
poderia muito confiar no campo das armas, nem era ele muito prevenido contra a
corrupção dos presentes e doações; pois, embora fosse impossível que Felipe o conquistasse, ele, no entanto, se deixava comprar a preço do
ouro e da prata que vinham de Susa e de Ectabane. Disposto a louvar os belos e
gloriosos feitos de seus velhos ancestrais, ele não seguia ou imitava seus exemplos".
Susa, Ectabane e Babilônia eram cidades nucleares da Pérsia antiga... Plutarco, mestre da ética
ocidental, com poucos vocábulos diz tudo sobre o duplo lado de um parlamentar
oficialmente impoluto.
Uma prática nefanda, sempre em voga na vida política desde os tempos gregos, é
a técnica do desmascaramento alheio para preservar a própria face. A máscara, que todo ser humano usa para guardar os
próprios segredos, serve como arma de proteção e ataque. Todo indivíduo maneja
a própria máscara e, "como ator, nela se transforma" (Elias Canetti, O Personagem e a
Máscara). Quem pretende desmascarar os semelhantes deles retira a defesa e o
possível ataque no mundo social. Desmascarar é cobrir o rosto com uma outra
máscara, a de assassino da vida moral alheia. O pior inimigo de qualquer
sociedade é o desmascarador, o Demóstenes que lateja em todo poderoso.
Raros parlamentares, na História ocidental, podem estar seguros de que o
livro-caixa, espelho que revela o seu verdadeiro semblante, jamais virá à luz
diurna. Douto e ardiloso, Bismarck, o chanceler de ferro:
"Ah, se as pessoas soubessem como são feitas as salsichas... e as
leis!"
O desmascarador pode ser movido por vários motivos: o ressentimento, a inveja,
o ódio sectário, a concorrência infeliz, as desilusões financeiras, amorosas,
etc. Não raro, ele é movido por algo que, em outro tratado de Plutarco, se designa como kakourgia,
o erotismo de ver o mal que se abate sobre os demais. Na língua alemã existe o
termo Schadenfreude, alegria com a tristeza
do próximo.
Quando se diz que alguém finge ser honrado como os varões de Plutarco, não se tem ideia exata
do pretendido por ele em suas biografias de indivíduos ilustres. Cada herói
grego tem ali o contraponto de uma personalidade romana. Tal forma estilística
serve para analisar os personagens em perspectiva, comparando virtudes e
defeitos dos retratados. Não existe grego ou romano absolutamente puro. Fino
observador ético, Plutarco mostra os erros dos generais, políticos, pensadores, sobretudo o
seu excesso de virtude transformado em vício. O conceito filosófico para
designar tal inchaço é hybris, orgulho sem
medida, usado nas tragédias atenienses. Na Ética de Spinoza, o mesmo conceito
recebe um nome exato, existimatio: a
ideia de si mesmo que tem o soberbo, julgando estar acima dos demais. O soberbo
imagina ser lícito desprezar, caçoar, humilhar os fracos e "inferiores".
O desmascarador é atacado pela hybris (na
religião cristã, o pai da mentira, Lúcifer, é soberbo) e se
compraz em sua almejada preeminência sobre os semelhantes.
Ainda Spinoza, no Tratado Político, aponta os intelectuais
como ícones da soberba. "Os filósofos concebem as afecções que lutam em
nós como vícios nos quais os homens caem por sua falta. Por tal motivo eles se
habituaram a ridicularizar e deplorar tais afecções e, mesmo, as detestar se
desejam parecer mais imbuídos de moral. Acreditam agir divinamente, elevados ao
cume da sabedoria ao elogiar, entusiastas, uma natureza humana inexistente,
invectivando em discursos a que existe na realidade". Seguidor de Maquiavel, ele arremata dizendo
que os políticos não possuem tal soberba, embora vivam construindo armadilhas
para os seus iguais e para os governados. Quando um político assume a máscara
do moralista para destruir os seus pares, trata-se de astúcia imprudente. Pois
a pedra colocada por ele na trilha dos outros, com muita probabilidade, o fará
tropeçar. Afinal, todo livro-caixa oculto, cedo ou tarde, pode ser aberto.
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