Esta
semana, acompanhamos a conclusão do julgamento promovido pelo STF acerca das
cotas raciais para ingresso em universidades. Por ser contrário a tal
procedimento iniciado há 9 anos e, consequentemente, discordando da decisão do
Supremo Tribunal, trago à leitura dois textos.
No
primeiro deles, a autora, também, criadora do sítio “Contra a Racialização do
Brasil”, faz um comparativo imaginário entre uma antiga lenda e a proposta de
separação de raças no Brasil. Discordo algo dela, pois a proposta de
padronização que ela pretende com a repercussão da lenda de Procrusto,
violenta, não é adequada à sociedade brasileira, pautada pela bonomia.
Apesar disso, o texto é importante para situarmos qual é o verdadeiro problema
do distanciamento de algumas camadas da população aos sistemas públicos
ofertados.
No
segundo, e para quem não tem acesso ao jornal, trago o Editorial do jornal
Folha de São Paulo, de 27/04/2012, dia seguinte ao julgamento do STF. É
importante conhecê-lo para que possamos sentir o quanto foi enviesado o
resultado unânime daquela Corte.
___________________________________________
Primeiro Texto
As cotas raciais e o Leito de
Procrusto
Para o INSTITUTO MILLENIUM, em 25 de
abril de 2012
Autora: Roberta
Fragoso Kaufmann
Na mitologia grega, conta-se a
história de Procrusto, famoso ladrão que além de surrupiar os transeuntes que
passavam em seu território, submetiam-nos a um tratamento cruel e degradante: a
necessidade de enquadrá-los em um leito de ferro, cortando-lhes a cabeça ou as
pernas, acaso ultrapassassem a cama. A lenda de Procrusto é uma metáfora sobre
a tentativa de padronização, ainda que lastreada apenas em artimanhas e em
sortilégios.
E aqui estamos, em pleno século XXI,
vivenciando as agruras da intolerância e da heteroidentificação pretendida por
meio dos Tribunais Raciais. De composição secreta e com base em místicos
critérios, são as “Comissões Raciais” quem vão estabelecer os rótulos
identitários que irão acompanhar os candidatos às cotas raciais pelo resto de
suas vidas.
Alguém poderia me ensinar qual é o
limite exato entre um pardo e um branco no Brasil? Será que preciso andar com
uma cartela de cores igual à das lojas de pintura para que esta definição seja
precisa e possa fazer algum sentido? Em um país miscigenado desde a
colonização, como o Brasil, a definição da mestiçagem revela-se completa
loteria. Somos ao cabo todos mestiços e o que dantes era motivo de orgulho,
momentaneamente parece ser a grande chaga e a prova do racismo no Brasil: a
dificuldade de encaixar-se em meio às pretensas categorias raciais. Não por
acaso, na única pesquisa de amostragem em que o entrevistado foi livre para
dizer à que cor pertencia, o resultado em terras tupiniquins foram
impressionantes 135 possibilidades, em uma mostra criativa que nem o Aurélio é
capaz de reproduzir.
Não precisamos copiar um modelo que foi
pensado para resolver o problema do racismo institucionalizado e praticado em
outros países
Esta exposição se torna melancólica
em relação ao nosso país quando se percebe que se a Corte Constitucional
conceder o beneplácito à instituição das políticas de cotas raciais em
Universidades, como é o caso hoje em julgamento, paulatinamente as cotas
raciais serão estabelecidas em todos os setores sociais, como pretendido pela
Secretaria de Igualdade Racial, beneficiando tão-somente uma casta de
privilegidos de classe média e alta de negros que não seriam os mais
necessitados da ajuda estatal. Consta do ideário de pleitos da referida
Secretaria do Racismo Institucional a instituição de cotas raciais em partidos
políticos, no mercado de trabalho, na publicidade e na propaganda, além de atendimento
diferenciado no Sistema Único de Saúde e do estabelecimento de indenizações
para cada descendente de escravo (?) no Brasil.
Em vez de observarmos o Brasil como
exemplo para o mundo do século XXI, a partir do convívio harmônico entre
brasileiros natos e imigrantes das mais diferentes culturas, religiões e cores,
ativo absolutamente estratégico nesse século de tantos conflitos, pretende-se
promover o dissenso e a divisão de nossa unidade nacional. As tentativas de
racialização e de imposição de categorias estanques colocam em risco justamente
o que temos de diferente – e de melhor – em relação aos outros países.
Nós não precisamos copiar um modelo
que foi pensado para resolver o problema do racismo institucionalizado e
praticado em outros países. Podemos ser criativos e elaborarmos um modelo
próprio de ação afirmativa para a necessária integração dos negros carentes no
Brasil. Cotas sociais, sim! Cotas raciais, não! Porque a pobreza, no Brasil, é
a grande causa da segregação.
Segundo
Texto
Cotas
raciais, um erro
Editorial
da Folha de São Paulo, 27/04/2012
O Supremo
Tribunal Federal declarou as políticas de cotas raciais em universidades
federais compatíveis com a Constituição. A decisão será saudada como um avanço,
mas nem por isso terá sido menos equivocada.
Ninguém
duvida que a escravidão foi uma catástrofe social cujos efeitos perniciosos
ainda se propagam mais de um século após a Abolição. Descendentes de cativos
-de origem africana ou nativa, pois também houve escravização de índios-
sofrem, na maioria dos casos, uma desvantagem competitiva impingida desde o
nascimento.
As
políticas adotadas por universidades que reservam cotas ou garantem pontuação
extra a candidatos originários daquela ascendência procuram reparar essa
iniquidade histórica. A decisão do STF dará ensejo à disseminação de tais
medidas em outras instâncias (acesso a empregos públicos, por exemplo), o que
ressalta a relevância do julgamento.
São
políticas corretivas que podem fazer sentido em países onde não houve
miscigenação e as etnias se mantêm segregadas, preservando sua identidade
aparente. Não é o caso do Brasil, cuja característica nacional foi a
miscigenação maciça, seguramente a maior do planeta. Aqui é duvidosa, quando
não impraticável, qualquer tentativa de estabelecer padrões de “pureza” racial.
Não se
trata de negar a violência do processo demográfico ou o dissimulado racismo à
brasileira que dele resultou, mas de ter em mente que a ampla gradação nas
tonalidades de pele manteve esse sentimento destrutivo atrofiado, incapaz de se
articular de forma ideológica ou política. Com a mentalidade das cotas raciais,
importa-se dos Estados Unidos uma obsessão racial que nunca foi nossa.
No
Brasil, a disparidade étnica se dissolve numa disparidade maior, que é social,
uma sobreposta à outra. A serem adotadas políticas compensatórias, o que parece
legítimo, deveriam pautar-se por um critério objetivo, alunos de escolas
públicas, por exemplo, em vez de depender do arbítrio de tribunais raciais cuja
instalação tem algo de sinistro.
A
Constituição estipula que todos são iguais perante a lei. É um princípio
abstrato; inúmeras exceções são admitidas se forem válidos os critérios para
abri-las. A ninguém ocorreria impugnar, em nome daquele preceito
constitucional, a dispensa de pagar Imposto de Renda para os que detêm poucos
recursos.
O cerne
da questão, portanto, consiste em definir se há justiça em tratar desigualmente
as pessoas por causa do tom da pele ou se seria mais justo, no empenho de
corrigir a mesma injustiça, tratá-las desigualmente em decorrência do conjunto
de condições sociais que limitaram suas possibilidades de vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário