Ouso
pedir que destines um tempo para a leitura do texto abaixo, longo, é verdade,
mas necessário para visualizar e entender o quê ocorre hoje e poderá ocorrer
amanhã, no cenário do domínio das tendências do pensamento e da conduta social.
Sugiro voltar os olhos para o passado secular e lembrar como o catolicismo
dominou o mundo, em todas as formas possíveis, promovendo avanços em muitos
casos, mas atraso em tantos outros, para a Humanidade.
Vivenciamos,
agora, um outro momento, sob um novo modelo, dito religioso, mas que de
religião tem pouco, e contextualizado no ganho fácil do dinheiro dos incautos,
sob o manto de promessas pastorais vãs, de curas e de ameaças com origem ditas
divinas, derivando para o perigoso campo do fanatismo e do irracionalismo
comportamental.
A
leitura abaixo, então, se feita com isenção e lateralidade mental possibilitará
apreender essa nova situação e os perigos dela. Perigos, no meu modo de pensar,
pois a radicalização espiritual sempre se mostrou perigosa na história da
Humanidade, desde o surgimento do monoteísmo.
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Os vendilhões dos templos
eletrônicos em tempos de espertalhões da fé
“Não
existe ninguém no governo ou no Congresso brasileiros com coragem para frear
essa flagrante ilegalidade, sancionada por verbas, dízimos, patrocínios e uma
farta hipocrisia”
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Incapaz
de vender a alma ao diabo, a Rede Bandeirantes acaba de revender seu santo
horário da noite para o pastor R.R. Soares, o líder da Igreja Internacional da
Graça de Deus. O seu ‘Show da Fé’ de 20 minutos, que começava religiosamente às
21h, agora vai durar uma hora inteira, a partir das 20h30. Não se sabe ainda
quanto custou esse novo e triplicado milagre, mas pelo contrato antigo o bom
pastor já pagava R$ 5 milhões mensais à Band. O vil metal falou mais alto
para a TV de Johnny Saad, que anunciava a devolução do horário nobre da noite a
seriados consagrados, como o 24
horas, para concorrer com as novelas da Globo e as séries do SBT,
todas com melhor audiência.
A
novidade escangalhou os planos do argentino Diego Guebel, que assumiu a direção
artística da Band em outubro passado com a promessa de recuperar o espaço nobre
e caro da noite para atrações mais mundanas do que a prosopopeia de Soares. A
bíblica derrota de Guebel na Band é apenas outro indício da onda avassaladora
do dinheiro que afoga a TV brasileira deste Brasil cínico que finge ser laico e
imune à força econômica da religião e seus falsos profetas. Os canais de rádio
e TV são concessões públicas, supostamente alheias aos credos e seitas
religiosas que transformaram estúdios, igrejas, templos e estádios em púlpitos
eletrônicos cada vez mais invasivos e escancarados.
Não
existe ninguém no governo ou no Congresso brasileiros com coragem para frear
essa flagrante ilegalidade, sancionada por verbas, dízimos, patrocínios e uma
farta hipocrisia. A irrestrita capitulação aos padres e pastores que lideram
milhões de fiéis (e eleitores) ficou escancarada na última eleição
presidencial, em 2010, quando os dois principais candidatos com raízes na
esquerda — Dilma Rousseff e José Serra — sucumbiram vergonhosamente à chantagem
das correntes mais atrasadas das igrejas, frequentando missas e cultos com o
gestual mal ensaiado de pios devotos que não sabiam nem metade da missa, nem
qualquer salmo dos evangelhos. Encenaram um constrangedor teatro de conversão medida
para não ofender o eleitor mais ortodoxo. Para não perder votos, Dilma e Serra
caíram na armadilha do falso debate religioso sobre o aborto — um tema que um e
outro, por mera consciência política ou formação acadêmica, sabem que nos
países mais evoluídos não passa de um grave e secular problema de saúde
pública.
A
submissão das instâncias do Estado secular ao poder cada vez maior das igrejas
pode ser medida pela intrusão cada vez mais descarada da fé nos meios
eletrônicos do Brasil, que deturpam a concessão pública pelo proselitismo
religioso vetado pela Constituição. A igreja católica brasileira agrupa hoje
mais de 200 rádios e quase 50 emissoras de TV, contra 80 rádios e quase 280
emissoras de TV de oito braços do crescente ramo evangélico. É um domínio que
se fortalece cada vez mais, embora adaptando seu perfil para fórmulas mais
agressivas e despudoradas de avanço sobre o bolso das populações mais pobres,
mais desesperadas, menos instruídas.
Comer
ou dormir
Em
agosto de 2011, a Fundação Getúlio Vargas divulgou o Novo Mapa das Religiões,
um denso estudo realizado pelo Centro de Políticas Sociais da FGV, com base em
200 mil entrevistas formuladas pelo IBGE em 2009 a partir de sua Pesquisa de
Orçamento Familiar (POF). O trabalho mostrou que o Brasil deixará de ser a
maior nação católica do mundo nos próximos 20 anos, mantida a queda progressiva
que sofre a Igreja no país. Ela representava 83,24% da população em 1991 e caiu
para 68,43% em 2009. “As mudanças que antes ocorriam em 100 anos agora
acontecem em 10. Se esta perda de 1% de católicos por ano continuar, a Igreja
católica terá em 20 anos menos da metade da população brasileira”, destacou o
coordenador da pesquisa, Marcelo Côrtes Neri, economista-chefe do Centro de
Políticas Sociais da FGV.
A
economia é um forte indutor desta transformação, diz Neri. Ele lembra que as
chamadas ‘décadas perdidas’ de 1980 e 1990 foram demarcadas pela queda do
catolicismo em contraste com a ascensão dos grupos evangélicos, especialmente
seus ramos mais belicosos e vorazes — os neopentecostais. O período de 2003 a
2009, compreendido entre duas graves crises econômicas, observa uma segunda
explosão evangélica, passando de 17,9% para 20,2%. A primeira explosão, ainda
maior, ocorreu nas últimas seis décadas do Século 20, quando os evangélicos
aumentaram seu rebanho em sete vezes: passaram de 2,6% em 1940 para 15,4% em
2000. A FGV foi buscar no alemão Max Weber (1864-1920), o pai da moderna
sociologia, o fundamento teórico que explica o avanço arrebatador dos
evangélicos, a partir de sua obra mais conhecida — A ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo,
publicada em 1904-05. Ali, Weber explica o maior desenvolvimento capitalista
nos países protestantes no Século 19 e a maior proporção desses fiéis entre
empresários e trabalhadores mais qualificados. “A tese de Weber era que o
estilo de vida católico jogava para outra vida a conquista da felicidade. A
culpa católica inibiria a acumulação de capital e a lógica da dívida de
trabalho, motores fundamentais do desenvolvimento capitalista”, escreve Neri.
Weber
repetia um ditado da época: “Entre bem comer ou bem dormir, há que escolher. O
protestante quer comer bem, enquanto o católico quer dormir sossegado”. O
pensador alemão constrói seu texto em cima de máximas do inventor e calvinista
americano Benjamin Franklin (1706-1790), um dos líderes da Independência dos
Estados Unidos, que dizia que “tempo é dinheiro” e “dinheiro gera mais
dinheiro”. Era uma notável conversão justamente aos argumentos opostos que
levaram ao grande cisma do cristianismo, no início do Século 16, quando um
atrevido padre agostiniano alemão, Martinho Lutero, pregou nos portões da
igreja de Wittenberg as suas 95 teses que desafiavam a autoridade do Papa e
quebravam a hegemonia de Roma sobre o mundo cristão. Na época, Lutero
denunciava justamente o que seria o âmago da Reforma Protestante: o desvio do
caminho de fé da igreja primitiva para o atalho da corrupção, da indulgência,
da simonia e da luxúria de papas e cardeais rodeados de amantes e concubinas,
antecessores lascivos dos bispos e padres que comem criancinhas.
Teologia
do bolso
Lutero
e sua radical volta às origens, estimulando o protesto aos desvios éticos de
Roma e o retorno à palavra original dos evangelhos, geraram os dois termos que
identificam os segmentos mais prósperos da dissidência cristã: os protestantes
e os evangélicos, onde brilha sua facção mais agressiva e endinheirada — o
pentecostalismo, que hoje abriga no mundo cerca de 600 milhões de seguidores,
pulverizados em 11 mil seitas e subgrupos. Ali viceja sua parcela mais
faustosa: a corrente neopentecostal, a que pertencem o abonado bispo R.R.
Soares e seus parceiros mais ricos, os também bispos Edir Macedo, Silas
Malafaia e Valdemiro Santiago, cada um chefiando sua própria seita, sempre na
condição suprema de ‘apóstolos’. Todos mostram uma devoção especial pela
alma e pelo bolso de seus seguidores, a quem não se acanham de pedir
contribuições financeiras a que, recatadamente, chamam de ‘oferta’.
Para
não atormentar ainda mais a vida de sua aflita freguesia, os quatro chefes
religiosos tratam de facilitar ao máximo as ofertas financeiras. Na tela da TV
de seus animados cultos, sempre se oferece o número das contas bancárias, a
bandeira dos cartões de crédito ou o telefone para informações extras que
permitam a oferta, rápida e facilitada. Nenhum deles fica ruborizado pela
insistência do pedido de ajuda, porque todos são pios devotos da ‘Teologia da
Prosperidade’, uma doutrina pecuniária que faria o velho Lutero engolir cada
uma das 95 teses que vomitou contra a cupidez da velha Roma.
A
ideia nasceu, evidentemente, no coração do capitalismo, os Estados Unidos, no
início do Século 20. O pai dessa fé sonante é o americano Essek William Kenyon
(1867-1948), um evangelista de origem metodista nascido em Saratoga, Estado de
Nova York. Descobriu o milagre do rádio e plantou ali a sua “Igreja no Ar”, a
ancestral eletrônica dos R.R.Soares e Malafaias da vida. Espalhou então aos
quatro ventos o lema que explica as benesses divinas da fartura: “O que eu
confesso, eu possuo”.
Kenyon
passou o bastão da prosperidade para um conterrâneo, Kenneth Erwin Hagin
(1917-2003), um jovem texano com deficiência cardíaca, que caiu de cama quando
adolescente. Garantiu ter ido e voltado ao inferno e ao céu não uma, nem duas,
mas três (três!) vezes. Com este desempenho singular, até para campeões de
esportes radicais, o jovem naturalmente converteu-se. Dizendo-se ungido para
ser mestre e profeta, Hagin garantia ter tido oito (oito!) visões de Cristo na
década de 1950, além de acumular alguns passeios extracorpóreos. Tudo isso
acrescido pela divina revelação de que os verdadeiros fiéis deviam gozar de uma
excelente saúde financeira e que o caminho da fortuna passava, inevitavelmente,
pela prosperidade de seus profetas aqui na Terra. Foi sopa no mel, e a teologia
da prosperidade conquistou corações e mentes — e bolsos.
Na
conta do santo
A
primeira semente deste ostensivo neopentecostalismo brotou no Brasil com a
Igreja Universal do Reino de Deus, fundada em 1977 pelo bispo Edir Macedo. Três
anos depois, o pastor R.R. Soares, casado com Magdalena, irmã de Macedo, saiu
do ninho da Universal para fundar sua própria igreja, a Internacional da Graça
de Deus, que acaba de alugar a tela do horário nobre da Band graças ao verbo
divino e a verba milionária do pastor. Uma década depois, o bispo Macedo, ainda
mais próspero do que o cunhado, comprou a sua própria rede de TV, a Record,
hoje a segunda maior audiência do país (4,7 pontos) no horário nobre das noites
de dezembro passado, embora ainda distante da Globo (13,8).
Os
televangelistas brasileiros aparentemente compõem um paraíso na terra e no ar
rico em mirra, incenso e ouro, muito ouro. Há tempos, quatro grupos evangélicos
rondam o empresário Sílvio Santos, que topa tudo por dinheiro, na esperança de
amealhar o espaço das madrugadas do SBT por módicos R$ 20 milhões mensais. Em
2009, o próprio Edir Macedo alvejou sua maior concorrente: ofertou R$ 545
milhões para alugar o espaço das madrugadas da Rede Globo para a sua Igreja. A
Globo piscou, não respondeu, e o bispo voltou à carga em agosto passado,
disposto a mover céus e terras. Nada feito.
A
contabilidade desses pastores, pelo jeito, oscila entre o inferno e o paraíso.
O bispo que oferecia milhões para comprar um naco do maior concorrente era o
mesmo dono da Igreja que fazia um descarado apelo em seu blog, em abril
passado, para que os fieis juntassem alguns trocados para ajudá-lo a pagar a
conta salgada de seu site.
Coisa miúda, apenas R$ 107.622 mensais, que o pobre bispo diz gastar com despesas
mundanas como hospedagem do servidor, salário dos funcionários, água, luz e
gastos administrativos da manutenção do site.
“Se o Espírito Santo lhe tocar, nos ajude a carregar essa responsabilidade”,
escreveu o bispo, implorando por uma doação mínima de R$ 20.
O
espírito santo, aparentemente, tocou a Rede Globo. A emissora dos Marinho odeia
o bispo Macedo, mas adora os evangélicos. Na véspera do Natal de 2011, 18 de
dezembro, a maior rede desta vasta nação católica rasgou o hábito e transmitiu
o seu primeiro evento evangélico, gravado uma semana antes no Aterro do
Flamengo, no Rio. O público presente, apenas 20 mil pessoas, foi uma heresia
para as ambições bíblicas da Globo, mas a fiel audiência na telinha na tarde do
domingo seguinte foi uma bênção divina. Ao longo dos 75 minutos do
programa, condensado de quase oito horas de gravação ao vivo (entre 14h e
21h30), apresentaram-se nove artistas no ‘Festival Promessas 2011′, sob o
comando do astro global Serginho Groisman. Um dos mais festejados foi o cantor
Regis Danese, 39 anos, que vendeu um milhão de cópias com um único disco
gospel, “Compromisso”, o único a conquistar o primeiro lugar em rádios e TVs
seculares do país e que lhe garantiu a indicação para o prêmio Grammy Latino em
2009.
A
conversão da Globo
Antes
desse sucesso, Danese já era consagrado como artista do Só Pra Contrariar, um
grupo de pagode que ainda ostenta o 27º lugar do ranking brasileiro, com 8
milhões de discos vendidos. Apesar disso, com problemas no casamento,
converteu-se ao protestantismo no início do século. Salvou o matrimônio com
Kelly, sua parceira musical, e engordou ainda mais o bolso. O álbum
“Compromisso”, que conquistou o ‘Disco de Diamante’ pela venda de 500 mil
cópias em apenas quatro meses de 2008, traz o seu maior sucesso, Faz um milagre em mim.
O jornalista Tom Phillips, do diário britânico The Guardian, anotou que, logo após sua
triunfal apresentação no festival da Globo, Danese foi indagado na entrevista
coletiva sobre os fundamentos deste milagre musical: “O senhor escutou a voz de
Deus? O que ele disse?”, perguntavam-lhe. O ex-pagodeiro explicava e,
embevecido, o isento repórter da revista Nova
Jerusalém ressoava a cada resposta: “Amém. Louvado seja o Senhor!”
A
genuflexão da Globo não representa uma súbita conversão da emissora ao credo
evangélico da música: “A Globo não é um canal católico, e sim secular e
republicano. Apenas documentamos um festival gospel por sua crescente
importância na vida cultural do Brasil”, esquivou-se Luiz Gleizer, diretor da
TV, ao jornalista britânico que ecoou o festival sob uma manchete embalada pela
típica ironia inglesa: “O gospel começa a dar o tom no Brasil, a casa da bossa
nova”.
Os
profetas da Globo não sabem entoar um único salmo, mas como os apóstolos
eletrônicos da concorrência também têm um ouvido afinado pelo doce tilintar das
moedas do templo. Isso não é contado nem no confessionário, mas os querubins
globais sussurram nos corredores da ‘Vênus Platinada’ que os direitos de
comercialização e os espaços publicitários do festival renderam à Globo algo
entre R$ 35 milhões a R$ 55 milhões, o suficiente para remir muitos pecados,
dúvidas e dívidas, aqui na terra e lá no céu. O grupo é dono da gravadora Som
Livre e de um catálogo religioso onde brilham ídolos como o padre católico Fábio
de Melo, que já vendeu quase 2 milhões de CDs pelo selo global.
O
olho cúpido e republicano da Globo está mirando um mercado de música gospel que
o The Guardian
estima em R$ 1,5 bilhão, um paraíso econômico onde se irmanam crentes,
artistas, emissoras laicas, pastores, espertalhões, vigaristas e políticos de
todas as crenças, devotos todos do santo dinheiro que cai do céu diretamente em
seus bolsos. O fluminense Arolde de Oliveira, deputado federal pelo PSD —
aquele diabólico partido nascido da costela do prefeito Gilberto Kassab e que
garante não pertencer nem ao paraíso, nem ao inferno, nem ao purgatório —, é
dono da rádio 93 FM e do Grupo MK Music, que ele jura ser o maior selo de
música gospel do continente. “Mais de 60 milhões de brasileiros estão direta ou
indiretamente ligados à Igreja Evangélica”, lembra o deputado Oliveira. A
Globo, como se vê, tem a inspiração divina e o ouvido apurado.
O
festival Promessas abriu as portas de uma terra prometida para os profetas
globais. No domingo gospel, a audiência da Globo subiu aos céus, dando-lhe a
indulgência de miraculosos 13 pontos no Ibope (cada ponto representa 58 mil
aparelhos ligados), bem mais do que os 7 humildes pontos habituais do horário.
O pastor Silas Malafaia, inimigo da Universal do bispo Macedo, aproveitou e
tripudiou no seu site:
“A Record não acreditou nos evangélicos, a Globo acreditou e arrebentou na
audiência! Enquanto a Record fala mal dos cantores e da igreja, a Globo abre
espaço para o louvor e adoração a Deus”. E arrematou com um desajeitado elogio
que deve ter sobressaltado as almas globais: “Quando os que deveriam abrir as
portas fecham, Deus usa os ímpios para glorificá-lo”. Iluminada pela santa
promessa do Ibope, a ímpia Rede Globo prepara mais três edições do sucesso
gospel para 2012 — duas versões regionais e uma nacional, evitando
cuidadosamente o Rio de Janeiro, que já padece a praga de um congestionamento
evangélico todo santo ano.
O
golpe do martelinho
Valdemiro
Santiago é outro desgarrado da Universal. Depois de ser considerado um virtual
sucessor de Edir Macedo, brigou com ele e saiu para fundar em 1998 a sua seita,
a Igreja Mundial do Poder de Deus. Começou com 16 membros e hoje o apóstolo
Valdemiro chefia mais de dois mil templos, alguns na África e em Portugal, e um
jornal mensal, Fé
Mundial, com tiragem de 500 mil exemplares — além de um maçante
trololó diário de 22 horas na Rede 21, uma subsidiária da Rede Bandeirantes,
que administra as duas horas restantes.
Sua
marca registrada é um chapéu de boiadeiro, o que reforça sua imagem de astro
sertanejo, que costuma ganhar espaço até no Jornal
Nacional, da Globo, uma devota do divisionismo que Valdemiro
poderia provocar nas legiões de seu arqui-inimigo Edir Macedo. Quando enfrenta
problemas de caixa, Valdemiro confia no santo gogó. Em 2010, chorou diante das
câmeras de TV ao convocar 150 mil fiéis para ofertarem R$ 153, o número de
peixes de um alegado milagre de Cristo. Faturou cerca de R$ 23 milhões.
Empolgado,
o bispo sertanejo imaginou outra forma esperta de arrecadar dinheiro fácil, mas
desta vez sem choro. Criou a campanha do “Martelinho da Justiça”, um pequeno,
baratinho malho de madeira capaz de quebrar mandingas, maus-olhados e “as
pedras que atravessam os seus caminhos”. A clava fajuta de Valdemiro, que
despertaria a inveja do grande Thor, devia ser canonizada como a mais cara do
mundo: cada oferta pelo martelinho tinha o mínimo de R$ 1 mil e Valdemiro
esperava que 10 mil de seus seguidores o abençoassem com a compra do mimo, o
que rechearia seu chapelão com R$ 10 milhões.
No
reclame da Igreja Mundial na TV, o pastor de português trôpego, voz rouca,
terno e gravata mostrava a certeza das favas divinas e muito bem calculadas:
“Ainda hoje ou amanhã, na primeira hora, você vai até a agência bancária e faz
esta ‘ofertinha’ de R$ 1 mil. Depois, mandaremos o martelinho pelo correio”.
Para esse milagre acontecer, bastava ao crente fazer o depósito nas contas
indicadas na tela e disponíveis no Banco do Brasil, Bradesco ou Caixa Econômica
Federal. “De preferência no BB, como o nosso apóstolo tem nos orientado”,
aconselhava o pastor, com ar compungido.
A
atrevida igreja de Valdemiro já vendeu garrafinhas pet de 400 ml com ‘água
ungida’, entregues por ‘ofertas’ de R$ 100, R$ 200 ou até R$ 1.000, prometendo
resultados espantosos: “Uma única gota dessa água será o suficiente para mudar
a história de sua vida, para lhe abençoar de uma forma poderosa”, jurava o
santo homem, escoltado por outros oito pastores calados e sisudos, todos de
gravata e terno escuro. Se usassem óculos pretos iria parecer uma paródia do
CQC, sem a divina graça do programa humorístico da Band que sucede o show
religioso do pastor R.R. Soares nas noites da segunda-feira.
O
trovão homofóbico
O
bizarro merchandising
da Mundial tem produzido bons resultados, pelo menos para as finanças da igreja
de Valdemiro. No primeiro dia de 2012 ele inaugurou em Guarulhos (SP) a ‘Cidade
Mundial’, um megatemplo de 240 mil metros quadrados e capacidade para acolher
150 mil fiéis da Igreja Mundial do Poder de Deus — mais de duas vezes a lotação
prevista do Itaquerão (68 mil lugares), o estádio que o Corinthians está
construindo para a Copa do Mundo de 2014. Para erigir o templo, Valdemiro viu a
igreja aumentar seus gastos mensais em R$ 30 milhões, prova de que o martelinho
e a garrafinha são realmente miraculosos.
O
pastor Silas Malafaia, chefe supremo da AVEC, sigla da associação que mantém a
Igreja Vitória em Cristo, é a voz mais trovejante desse abusado mercado da fé
ancorado nos fundamentos pétreos da Teologia da Prosperidade. Embora tenha os
mesmos instrumentos de redenção econômica de Edir Macedo, Malafaia é um inimigo
mortal do dono da Universal. Divergiram até na eleição presidencial de 2010:
ele primeiro apoiou Marina Silva, depois fulminou sua opção pelo plebiscito no
debate sobre o aborto (“cristão não tergiversa nesse tema”), e acabou fazendo
campanha por Serra, adversário de Dilma, apoiada justamente pelo rival bispo
Macedo. Malafaia é figura fácil no Congresso Nacional, em Brasília, onde veste
a armadura de sua santa cruzada contra a proposta de lei que combate a
homofobia: “O projeto [que garante a livre orientação sexual] é a primeira porta
para a pedofilia”, reza, com a fúria dos justos. Numa entrevista a uma revista
religiosa, crucificou como “idiotas” todos os pastores que, ao contrário dele,
não apostam suas fichas, martelinhos e garrafinhas na Teologia da Prosperidade.
Ele
não poupa a garganta e fala muito: quase todo santo dia, Malafaia se esparrama
por cinco horas de programas variados em redes nacionais como CNT, Rede TV,
Boas Novas e Bandeirantes e ocupa os sábados de emissoras regionais em outros
15 Estados. Seu programa se espalha pelos Estados Unidos e Canadá e, desde
meados de 2010, Malafaia atinge 142 milhões de lares em 127 países da África,
Ásia, Oriente e Médio e Europa, com o apoio da americana Inspiration Network,
que faz a dublagem para o inglês.
Para
tornar mais veraz sua pregação, às vezes importa dos Estados Unidos
especialistas nesta riqueza material. No ano passado, junto com o pastor
americano Mike Murdock, Malafaia lançou o projeto do “Clube de 1 Milhão de
Almas”. Alma, sabem os televangelistas, custa caro. Ele pretendia arrebanhar um
milhão de crentes para sua grei e seus programas de TV, mediante a ‘oferta’
(voluntária, claro) de R$ 1 mil — ou seja, um martelinho de madeira, pelo
generoso chapéu do bispo Valdemiro. Na conta do lápis, uma bolada plena de R$ 1
bilhão, capaz de pagar mais do que cinco Mega-Senas da Virada, que bateu em R$
177 milhões no réveillon de 2011. Os ofertantes ganhariam o livro 1001 chaves da sabedoria,
do pastor Murdock, e um certificado do clube milionário, em todos os sentidos.
Para
inspirar o seu rebanho, Malafaia teve a feliz ideia de colocar um contador de
acessos na página da igreja para que todos acompanhassem a adesão em catadupa
do milhão de almas. Algo deu errado, ou o martelinho não funcionou. Lançado em
abril do ano passado, o contador da igreja Vitória em Cristo virou uma estátua
de sal, como a mulher de Lot em Gênesis (19,26) e estagnou num número pífio:
miseráveis 58.875 almas era a contagem de quinta-feira passada, 5 de janeiro.
Um inferno de faturamento que não chegou a R$ 60 milhões, muito distante do
paraíso do R$ 1 bilhão arquitetado pelo diabólico Malafaia. Faltam portanto
ainda 941.125 almas para Malafaia inaugurar, sob as trombetas de Jericó, o seu
clube milionário. Haja martelinho!
O
supermercado da fé
O
bravo Malafaia não desiste facilmente. Em 2009 ele lançou a campanha de uma Bíblia por módicos
R$ 900, pouco menos que um martelinho. Era a tarifa da Bíblia da Batalha
Espiritual e Vitória Financeira, sacada genial de outro gênio da prosperidade,
o pastor americano Morris Cerullo. Desta vez, a garrafinha deve ter funcionado,
pois antes do final do ano ele viajou à Flórida, nos Estados Unidos, e lá viu
se materializar, em nome da Vitória em Cristo, um jato executivo Cessna quase
novo, modelo Citation Excel, pela bagatela de 12 milhões — de dólares!
Se
alguém tiver alguma restrição a Bíblia,
martelinho ou garrafinha, nem assim terá qualquer constrangimento para auxiliar
o empreendimento celestial de Malafaia. Na sua página na Internet, o bom pastor dá a boa notícia de
que todos podem participar de sua jornada, tornando-se seu ‘Parceiro
Ministerial’, um programa de fidelidade da Igreja que arrecada fundos para
manter seus programas de TV. A porta está aberta a “qualquer pessoa que receba
de Deus a visão de abençoar vidas, proclamando o Evangelho por meio das
mensagens do pastor Malafaia”, explica o dono do site e da igreja. Dependendo do tamanho
da carteira, seu título de parceiro também cresce: o ‘Especial’ paga R$ 15
mensais, o ‘Fiel’ doa R$ 30 e o ‘Gideão’ entra na cota de sacrifício do
martelinho: R$ 1 mil mensais, com direito a um exemplar por mês da revista Fiel, livros,
bíblias e um cartão para 10% de descontos nos produtos da Editora Central
Gospel comprados pelo telemarketing,
“desde que não esteja em promoção”.
Virar
parceiro do pastor é fácil, pagar é muito mais. A organização abençoada de Malafaia
trabalha com o ganhoso instrumental financeiro de uma grande loja de
departamentos, como convém a este éden da prosperidade. A igreja Vitória
em Cristo opera, sem preconceitos, com cartões Visa, Master, Diners, Amex ou
Hipercard e tem contas abertas, sem discriminação, com o Banco do Brasil, HSBC,
Bradesco ou Itaú, além de trabalhar com boletos bancários ou cheques nominais.
Malafaia aceita boletos antecipados para o ano todo, mas nenhuma contribuição
abaixo de R$ 15. Acima, pode.
Abobrinhas
e beterraba
Agora,
esse mundo dourado de riquezas, promessas, ofertas, obras e fartura vai ganhar
outro e inesperado púlpito: um espaço de brilho, luzes e discussões mundanas,
terrenas, insinuantes, quase lascivas. Começa na terça-feira (10/1) a 12º
edição do Big Brother
Brasil, o reality
show da Globo que arrebata o país por 12 semanas no seu jogo
canalha de perfídias, traições, intrigas e sensualidade explícitas, onde
garotas curvilíneas e garotos musculosos, todos transbordantes de hormônios e
carentes de neurônios, desfilam suas abobrinhas em diálogos patetas e reflexões
idiotas. O jornalista Eugênio Bucci, professor de Ética Jornalística da ECA-USP
e da ESPM, de São Paulo, tatuou o BBB
como “o mais deseducativo programa da TV brasileira, onde a fama justifica
qualquer humilhação”.
Na
TV, onde nada se cria e tudo se copia, a Record também tem sua versão BBB, A fazenda, com mais
roupa e a mesma dose intragável de papo imbecil. A personal trainer Joana, a vencedora da
versão 4 d’A fazenda,
que acabou em outubro passado, arrebatou R$ 2 milhões após encontrar uma
beterraba premiada, entre outros sofisticados desafios intelectuais.
Apesar
dessa crônica indigência, mais de 130 mil jovens brasileiros se inscreveram
para o BBB 12,
ao longo de sete meses, filtrados em seletivas regionais em dez capitais. É uma
febre televisiva que pode parar até a maior cidade brasileira, São Paulo, onde
chega a bater em 40% do Ibope, o que significa quase dez milhões de
telespectadores, metade da população da Grande SP.
A
vencedora do BBB
de 2011, a modelo paulista Maria Helena, 27 anos, de São Bernardo do Campo,
faturou um cheque de R$ 1,5 milhão ganhando o voto por telefone de 51 milhões
de pessoas. Se fosse candidata a presidente em 2010, Maria Helena, capa da edição
de junho de 2011 da revista Playboy,
teria derrotado José Serra por mais de sete milhões de votos e perderia para
Dilma Rousseff por menos de cinco milhões.
Boninho,
o diretor do BBB,
apimentou a receita em 2012, para horror do pastor Malafaia, infiltrando quatro
homossexuais entre os doze sarados concorrentes. “Três dos quatro gays são
mulheres”, adiantou o lúbrico Boninho no seu tuíter. Ele não disse, mas o
programa de 2012 terá também a atração extra de duas evangélicas, a assistente
comercial mineira Kelly, 28 anos, e a zootécnica baiana Jakeline, 22. O
empresário Danilo Leal, 45 anos, pai de Jakeline, acha que a filha vai resistir
bem ao paredão impiedoso do BBB,
apesar de evangélica: “Ela não é recatada. Espero que Jakeline aproveite bem
seus 15 minutos de fama e faça o pé de meia”, reza o empresário, dando sua
sanção paternal para o que der e vier.
Não
se sabe ainda o tamanho do fio-dental que as duas evangélicas vão exibir na
casa mais vigiada do Brasil, nem o salmo que irão recitar debaixo do edredom,
cercadas por tantas câmeras indiscretas. Não deixa de ser simbólico que, cinco
séculos após ser cravado nos portões da igreja de Wittenberg, o credo
rigorosamente puritano e austero fundado pelo cisma de Luterano infiltre duas
crentes assanhadas e iconoclastas no cenário conspícuo do programa mais ímpio
da maior rede brasileira de TV aberta. A explicação, certamente, não está nas
páginas lambidas da Bíblia dos templos e igrejas desta terra supostamente
laica, mas nas cédulas louvadas do dinheiro ungido pela graça divina e pela
licença dos homens neste país tropical, que Jorge Ben resumiu como “abençoado
por Deus e bonito por natureza”.
A
louvação ecumênica ao dinheiro pintado pela hipocrisia de todos os credos
esclarece, em parte, a progressiva invasão destes templos cada vez mais
eletrônicos, escancarados por vendilhões cada vez mais acessíveis a
espertalhões cada vez mais abusados no assalto à boa fé de sempre dos
desesperados.
O
velho evangelista Kenyon, profeta dessa cínica doutrina da prosperidade,
poderia traduzir este Armagedom moral com o mantra invertido da religião de
resultado que inventou: o que eu possuo, não confesso.
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