O texto abaixo do autor,
ex-preso de Guantánamo, leva a perguntar sobre que direito têm esses criminosos
governamentais internacionais, de assassinar ideais e vidas
de outras pessoas e países?
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Meu pesadelo em Guantánamo
TEXTO PUBLICADO NO ESTADÃO DE 14/01/2012
Lakhdar Boumediene
Há dez anos foi aberto o campo de detenção na base naval
americana da Baía de Guantánamo. Durante sete anos ali estive preso, sem
explicação ou acusação. Minhas filhas cresceram sem mim.
Elas mal começavam a andar quando fui detido e jamais tiveram
permissão para me visitar ou falar comigo ao telefone. Muitas de suas cartas
foram devolvidas com o carimbo “não entregar”. As poucas que recebi foram
censuradas, a ponto de suas mensagens de amor e apoio se perderem.
Para alguns políticos americanos, as pessoas detidas em
Guantánamo são terroristas, mas nunca fui um terrorista. Se tivesse sido levado
a um tribunal quando fui preso, as vidas das minhas filhas não teriam sido
destroçadas e minha família não teria sido lançada na pobreza. Somente depois
de a Suprema Corte dos EUA ordenar que o governo justificasse suas ações
perante um juiz federal consegui limpar meu nome e reunir-me com minha família.
Deixei a Argélia em 1990 para trabalhar no exterior. Em 1997,
mudei-me com minha mulher e filhas para a Bósnia-Herzegovina a pedido do meu
empregador, a Sociedade do Crescente Vermelho dos Emirados Árabes Unidos, na
qual trabalhei em Sarajevo como diretor de ajuda humanitária para crianças que
perderam os pais durante o conflito. Em 1998 tornei-me cidadão bósnio. Tínhamos
uma vida tranquila, mas tudo mudou depois do 11 de Setembro.
Quando cheguei ao trabalho na manhã de 19 de outubro de 2001, um
agente do serviço de inteligência me aguardava. Pediu para que o acompanhasse
para ser interrogado. Obedeci de bom grado, mas posteriormente fui informado de
que não poderia voltar para casa. Os EUA solicitaram às autoridades locais
minha prisão e a de cinco indivíduos. De acordo com notícias veiculadas na
imprensa na época, os EUA acreditavam que eu armava um complô para explodir sua
embaixada em Sarajevo. Jamais pensei nisso.
O fato de que os EUA cometeram um erro ficou claro desde o
início. A Suprema Corte da Bósnia analisou as alegações apresentadas pelos
americanos e concluiu que não havia provas contra mim, ordenando minha liberação.
Em vez disso, no momento em que fui libertado, agentes americanos detiveram a
mim e a outros cinco. Fomos amarrados como animais e enviados de avião para
Guantánamo, a base naval americana em Cuba. Chegamos lá em 20 de janeiro de
2002.
Eu ainda tinha fé na Justiça americana. Acreditava que meus
captores rapidamente verificariam o erro. Mas quando não dei a meus
inquiridores as respostas que desejavam – como poderia, se não tinha feito
nada? -, seu comportamento foi se tornando mais brutal. Fui mantido acordado
durante vários dias sucessivos. Obrigado a permanecer em posições dolorosas
durante horas. São coisas sobre as quais não gosto de escrever.
Empreendi uma greve de fome por dois anos, pois ninguém me
informava a razão de estar preso. Duas vezes por dia, meus carrascos me
enfiavam pelo nariz um tubo que passava pela minha garganta e chegava ao meu
estômago para conseguirem me alimentar. Era atroz, mas eu era inocente e assim
mantive o meu protesto.
Em 2008, minha demanda por um processo legal justo chegou à
Suprema Corte americana. Na sua sentença, a corte declarou que “as leis e a
Constituição são projetadas de modo a sobreviverem, e vigorarem, em períodos de
exceção”. E decidiu que prisioneiros como eu, não importa o quão graves sejam
as acusações, têm direito de defender-se perante os tribunais. Reconheceu uma
verdade básica: o governo comete erros.
Cinco meses depois, o juiz Richard J. Leon reexaminou as
alegações oferecidas para justificar minha prisão, incluindo informações
secretas sobre as quais jamais tive conhecimento. O governo abandonou a
acusação de complô para explodir sua embaixada antes mesmo de ser ouvido pelo
juiz, que após a audiência ordenou minha libertação e a de quatro outras
pessoas também presas na Bósnia.
Jamais esquecerei a cena em que eu, sentado ao lado dos outros
quatro detentos numa esquálida sala em Guantánamo, ouvi por um alto-falante
indistinto o juiz ler sua sentença na sala de um tribunal em Washington. Ele
implorou ao governo que não recorresse da decisão, pois “sete anos esperando
que o nosso sistema legal lhes desse uma resposta a uma pergunta tão
importante, no meu julgamento, foi demasiado”. Fui libertado em 15 de maio de
2009.
Vivo na Provença, com minha mulher e filhos. A França
propiciou-nos um lar e um novo começo. Tive a felicidade de retomar os laços
com minhas filhas e, em agosto de 2010, recebi um novo filho, Yousef. Estou
aprendendo a dirigir, fazendo uma reciclagem profissional e reconstruindo minha
vida. Espero voltar a trabalhar ajudando as pessoas, mas, até agora, como
resultado de ter passado sete anos e meio detido em Guantánamo, apenas algumas
organizações de direitos humanos pensaram em me contratar.
Não gosto de pensar em Guantánamo. As lembranças são muito
sofridas. Mas compartilho aqui a minha história, pois 171 homens permanecem lá.
Entre eles está Belkacem Bensayah, preso na Bósnia e enviado para Guantánamo
comigo.
Cerca de 90 prisioneiros foram inocentados e autorizados a ser
transferidos de Guantánamo. Alguns são de países como Síria ou China – onde
serão torturados se retornarem a casa – ou do Iêmen, que os EUA consideram um
país instável. De modo que eles continuam cativos, sem um fim em vista. Não
porque são perigosos ou porque atacaram os Estados Unidos, mas porque o estigma
de Guantánamo significa que não têm um lugar para onde ir e os EUA não darão
abrigo a nenhum deles.
Fui informado que meu processo perante a Suprema Corte hoje é
estudado nas escolas de Direito. Talvez um dia isso me proporcione alguma
satisfação, mas enquanto a prisão de Guantánamo permanecer aberta e homens
inocentes continuarem lá, meus pensamentos estarão com eles, esquecidos naquele
lugar de sofrimento e injustiça.
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