Ocorrido recentemente, o aniversário de 55 anos do contragolpe militar contra o comunismo no Brasil, ainda suscita discussões sobre suas origens, causas e fundamentos. Contragolpe porquê todos os registros da História da época indicavam a certeza de uma revolução proletária nos moldes da revolução russa, já expandida para a China e para Cuba, além de outros recantos do mundo. A experiência dos desacertos e das crueldades cometidas apenas nesses três países, já indicavam de per si que nenhuma sociedade poderia aceitar a ditadura esquerdista. Hoje, sabemos das centenas de assassinatos em Cuba, assim como das dezenas de milhões na URSS e das presumíveis 80 milhões de vidas chinesas roubadas.
Enfim, como disse, ainda há muito a conhecer e a aprender para compreender aquele período. Neste contexto, o artigo abaixo ajuda a ver o passado, a partir de um dos seus aspectos. Portanto, vale a pena a leitura.
__________________________________________________________________
"1964: VERDADES
INCONVENIENTES"
Por Flavio Gordon
“É
inegável que o golpe militar e civil foi empreendido sob bandeiras defensivas.
Não para construir um novo regime. O que a maioria desejava era salvar a democracia,
a família, o direito, a lei, a Constituição…” (Daniel Aarão Reis, Ditadura e
democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988).
Na madrugada de 27 de novembro de
1962, um Boeing 707-441 (prefixo PP-VJB) decolou do Rio de Janeiro levando 80
passageiros e 17 tripulantes. Era o voo 810 da Varig, com destino a Los
Angeles, e escalas em Lima, Bogotá e Cidade do México. Pouco antes de
aterrissar no Aeroporto Internacional Jorge Chávez, em Lima, a aeronave colidiu
com uma montanha e explodiu, matando todos a bordo.
Entre as vítimas fatais, estava Raúl
Cepero Bonilla, que substituíra Ernesto Che Guevara na presidência do Banco
Nacional de Cuba, e que, à frente de uma grande delegação cubana, viera ao
Brasil sob o pretexto formal de participar da 7ª Conferência da FAO
(Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura). Informalmente,
Bonilla fora enviado por Fidel Castro para tratar de um assunto delicado com o
presidente brasileiro João Goulart.
A história começara meses antes do
acidente aéreo, quando o coronel getulista e veterano da FEB Nicolau José
Seixas, nomeado por Goulart para a chefia do Serviço de Repressão ao
Contrabando, obteve informações sobre a chegada recorrente de grandes caixotes
com geladeiras a uma fazenda em Dianópolis (à época, Goiás; hoje, Tocantins).
Como não houvesse sequer energia elétrica naquele lugar ermo, Seixas desconfiou
que o conteúdo dos caixotes fossem armas contrabandeadas por latifundiários da
região. Tendo reunido seus homens de confiança, numa madrugada, o coronel
comandou uma batida surpresa à fazenda. Assustados, e sem oferecer resistência,
os ocupantes fugiram para o mato, deixando para trás todos os pertences,
incluindo as tais “geladeiras”. Ao inspecionar a carga, Seixas e seus comandados
tiveram uma surpresa.
Com efeito, havia ali armas
contrabandeadas, mas não só. Junto a elas, muitas bandeiras cubanas, retratos e
textos de discursos de Fidel Castro e do deputado pernambucano Francisco Julião
(o líder das Ligas Camponesas), manuais de instrução de combate e planos para a
construção de novos focos de guerrilha rural. Além disso, havia também
planilhas detalhando a polpuda contribuição financeira enviada por Cuba ao
movimento revolucionário de Julião. Sim, sem desconfiar de nada, o coronel
Seixas acabara de desbaratar um campo de treinamento militar das Ligas
Camponesas, que, em plena vigência da democracia no país (o ano era 1962,
recorde-se), pretendia derrubar o governo por meio das armas, instaurando aqui
um regime comunista nos moldes cubanos.
Em vez de comunicar sobre o material
subversivo ao serviço de inteligência do Exército, como seria o mais comum, o
coronel Seixas entregou-o diretamente a João Goulart, que, diante da grave
ameaça estrangeira ao seu governo, tomou uma decisão muito estranha. Sem nada
comunicar aos seus ministros, ao Congresso, ao STF ou à imprensa, o presidente
foi se queixar com o embaixador de Cuba, dizendo-se “traído”. E é nesse
contexto que, dias depois, Fidel Castro envia Raúl Cepero Bonilla para se haver
com Goulart.
Em reunião sigilosa no Palácio do
Planalto, e depois de conversarem sabe-se lá o que, o ministro cubano recebeu
das mãos do presidente brasileiro todo o material apreendido em Dianópolis. Com
esse gesto discreto e conciliador, Goulart dava o caso por encerrado,
pretendendo que ninguém mais soubesse do ocorrido. Para seu azar, contudo, a
pasta de couro em que Bonilla levava a documentação de volta a Cuba foi
encontrada intacta entre os destroços do Boeing 707-441. O material acabou nas
mãos da CIA, que tornou público o seu conteúdo.
Convém esclarecer: a história
relatada acima não brotou da cabeça de nenhum bolsonarista radical,
intervencionista ou saudosista do regime militar. Ela está no livro Memórias do
Esquecimento, do ex-guerrilheiro Flávio Tavares, um dos 15 presos políticos
libertados por ocasião do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick. E,
muito embora Tavares tenha se limitado a relatar os fatos, furtando-se a uma
conclusão inconveniente à versão esquerdista da história, ela me parece
inescapável.
Ao devolver discretamente à nação
inimiga os planos de um levante armado contra o seu governo, sem nada informar
às Forças Armadas e aos demais poderes da República, o presidente João Goulart
cometeu um ato de traição à pátria. Que tenha, ele próprio, se declarado
“traído” ao embaixador cubano é altamente significativo nesse contexto, um
sinal evidente de que esperava lealdade de Cuba, e de que, portanto, algo em
troca fazia para merecê-la. Talvez jamais venhamos a saber exatamente que algo
era esse, mas o simples acerto sigiloso com Fidel já seria motivo mais que
justificado para a sua deposição.
Eis o tipo de fato que a esquerda
brasileira, solidamente aquartelada na grande imprensa, não deseja que seja
mais conhecido por parte do público, uma vez que ameaça a sua mitologia
particular sobre o 31 de março de 1964. Se, entre outras coisas, fosse
comprovada a existência de focos de guerrilha no país antes da queda de João
Goulart (e, ademais, com o patrocínio da ditadura socialista cubana), cairia
por terra a lenda segundo a qual a opção pela luta armada foi apenas uma reação
de setores da esquerda ao regime militar, e não parte de uma estratégia de
tomada violenta do poder.
Foi para impedir que os leitores
nutrissem qualquer impulso de questionar a lenda que, por exemplo, a revista
Super Interessante publicou em outubro do ano passado (em plena corrida
eleitoral, portanto) uma matéria com o título “Mito: os militares impediram um
golpe comunista em 1964”, cujo lead exibia o dogma inquestionável: “A verdade:
Jango era um político trabalhista, não comunista. E a luta armada só ganhou
adeptos depois do golpe”. No corpo da matéria, lia-se ainda: “Embora a
revolução cubana e a figura romântica de Che Guevara pudessem inspirar
jovens idealistas, a luta armada estava fora dos planos das esquerdas
brasileiras… Enquanto o Brasil foi uma democracia, a luta armada ficou de fora.
Em vez disso, a esquerda abraçava a estratégia pacífica do PCB de se aliar a
Jango e pressionar por reformas nas ruas. Foi somente com o golpe de 1964 que
grupos debandaram do Partidão e abraçaram o modelo de revolução de Fidel
Castro. Se essas pequenas e malsucedidas guerrilhas tentaram fazer do Brasil
uma segunda Cuba, foi em grande parte em reação ao próprio golpe” (grifos
meus).
Trata-se de um exemplo típico das
tentativas da esquerda de emplacar sua narrativa mistificadora, com base num
curioso non sequitur, segundo o qual o fracasso circunstancial do projeto de
luta armada serviria como prova do seu caráter essencialmente inofensivo, com o
qual só mesmo um anticomunista paranoico poderia se preocupar. Ora, decerto
ninguém esperava que um redator da Super Interessante abandonasse sua refeição
vegana ou a balada com os amigos para se aprofundar na historiografia do período
antes de lhe dedicar uma matéria, sobretudo quando o objetivo não é informar o
público, mas jogar água no moinho da esquerda. Mas o fato é que, hoje, temos
fartas evidências mostrando que a ameaça de uma revolução armada já se fazia
presente muito antes da derrubada de João Goulart. E, de novo, tais evidências
não provêm de fanáticos bolsonaristas, mas de estudiosos simpáticos à esquerda,
como, por exemplo, a historiadora Denise Rollemberg, da Universidade Federal
Fluminense.
No livro O apoio de Cuba à luta
armada no Brasil, a autora confirma o relato de Tavares, deixando claro que a
narrativa habitual da esquerda simplesmente inverte a ordem dos fatores: antes
que consequência do assim chamado golpe de 1964, a opção da esquerda pela
revolução armada foi uma de suas causas. Escreve Rollemberg: “Quanto à
revolução brasileira, Cuba apoiou a formação de guerrilheiros, desde o momento
em que assumiu a função de exportar a revolução, quando o Brasil vivia sob o
regime democrático do governo João Goulart, ou seja, antes da instauração da
ditadura… Cuba apoiou, concretamente, os brasileiros em três momentos bem
diferentes. O primeiro, como disse, foi anterior ao golpe civil-militar. Nesse
momento, o contato do governo cubano era com as Ligas Camponesas… Cuba viu nesse
movimento e nos seus dirigentes o caminho para subverter a ordem no maior país
da América Latina”. E conclui: “A relação das Ligas com Cuba evidencia a
definição de uma parte da esquerda pela luta armada no Brasil, em pleno governo
democrático, bem antes da implantação da ditadura civil-militar. Embora não se
trate de uma novidade, o fato é que, após 1964, a esquerda tendeu – e tende
ainda – a construir a memória de sua luta, sobretudo, como de resistência ao
autoritarismo do novo regime. É claro que o golpe e a ditadura redefiniram o
quadro político. No entanto, a interpretação da luta armada como,
essencialmente, de resistência deixa à sombra aspectos centrais da experiência
dos embates travados pelos movimentos sociais de esquerda no período anterior a
1964” (grifos meus).
É preciso lembrar ainda que, ao
falar de interferência cubana na política brasileira, estamos falando
necessariamente da URSS. Desde o início da Guerra Fria, os dirigentes
soviéticos estavam convencidos de que precisavam estender os seus tentáculos
sobre o Terceiro Mundo. Em meados de 1960, por exemplo, o comando central da
KGB já tratava Cuba como um Avanpost – ou, em jargão militar, “cabeça-de-ponte”
– para a conquista da América Latina. Em julho do ano seguinte, o então chefe da
KGB, Alexander Shelepin, enviou a Kruschev um plano para explorar a nova
posição. A ideia era financiar os movimentos de libertação nacional do Terceiro
Mundo para que conduzissem levantes armados contra governos considerados
“reacionários” ou “pró-americanos”. Como observou certa feita Nikolai Leonov,
alto oficial de inteligência soviético, havia à época a convicção de que “o
destino do enfrentamento mundial entre os EUA e a URSS, entre capitalismo e
socialismo, seria decidido no Terceiro Mundo”.
Quando
o redator da Super Interessante afirma a não existência de uma ameaça de
revolução comunista no Brasil da época, com base no argumento de que “Jango não
era comunista. Marxistas ortodoxos defendem o fim da propriedade privada dos
meios de produção. Já Jango era um advogado proprietário de terras gaúchas”,
ele demonstra total ignorância do modus operandi da Internacional Comunista.
Em primeiro lugar, há aí uma
confusão primária entre a definição enciclopédica de uma doutrina política e a
sua realidade histórica concreta. Que marxistas defendessem doutrinariamente, e
em abstrato, o fim da propriedade privada, não significa que tenham abdicado
dela para a conquista e manutenção do poder (o que, aliás, seria materialmente
impossível). Como mostrei em artigo passado, os dirigentes comunistas sempre
foram os grandes proprietários nas nações em que chegaram ao poder. Defendiam o
fim da propriedade privada alheia, evidentemente, não o da sua própria. Ora, se
adotássemos o critério infanto-juvenil do redator da matéria, seríamos forçados
a concluir que jamais houve no mundo um comunistazinho sequer, pois todos eles
foram proprietários (de terras, de imóveis, de moeda, de artigos de luxo etc.).
Em segundo lugar, para os objetivos
da Internacional Comunista, pouco importava o que Jango era, ou seja, quais as
suas convicções político-ideológicas pessoais. Era preferível, aliás, que os
líderes das nações-alvo do projeto expansionista soviético não fossem membros
formais dos partidos comunistas locais. É o que consta expressamente, por
exemplo, num dos documentos dos arquivos da StB (o serviço de inteligência
tcheca que atuava como braço da KGB), citado no meu livro A Corrupção da
Inteligência, em que se descrevem alguns dos objetivos da espionagem comunista
no Terceiro Mundo: “Ambos os serviços de inteligência [i.e., KGB e StB]
efetuarão medidas ativas com o objetivo de garantir ativistas progressistas
(fora dos partidos comunistas) nos países da África, América Latina e Ásia, que
possuam condições para, no momento determinado, assumir o controle de
movimentos de liberação nacional”. O referido documento data de 1961, mesmo ano
em que João Goulart – um dos “ativistas progressistas” alvos das medidas ativas
soviéticas – assumia a presidência.
Segundo o historiador britânico
Christopher Andrew, que realizou pesquisa nos arquivos pessoais do dissidente
soviético e ex-agente da KGB Vasili Mitrokhin: “O papel da KGB na política
soviética para o Terceiro Mundo foi mesmo mais importante do que o desempenhado
pela CIA na política americana. Por um quarto de século, e ao contrário da CIA,
a KGB acreditou que o Terceiro Mundo era a arena na qual poderia vencer a
Guerra Fria”. Graças à abertura dos arquivos da StB, hoje sabemos, entre outras
coisas, que, já em 1961, a URSS planejava “causar guerra civil no Brasil”.
que essas informações fossem
conhecidas do público. Hoje, quando o muro de silêncio sobre fatos
politicamente inconvenientes começa a ruir, não é de se espantar que a esquerda
reaja com verdadeiro pavor. Afinal, é preciso manter a todo custo o consenso
dos bem-pensantes sobre o período, a saber: a preocupação demonstrada pelo
governo americano – e, internamente, pelas forças políticas ditas conservadoras
– com a expansão do comunismo na América Latina durante a Guerra Fria não
passou de paranoia motivada por um anticomunismo patológico (“macarthista”),
histérico e desprovido de razão.
O pânico de ver aquele consenso
desmascarado aos olhos da população resultou na mais recente e desesperada
tentativa de censura praticada intelligentsia de esquerda no Brasil, que tudo
fez para desacreditar e reduzir o alcance do documentário 1964: o Brasil entre
armas e livros, iniciativa do portal Brasil Paralelo. Por trazer dados
históricos relevantes e até hoje ocultados do grande público por força do
maquinário de hegemonia narrativa operado por nossa esquerda cultural, o filme
não poderia mesmo ser tolerado pela intelligentsia progressista. Como digo no
meu livro, há um constante desejo de que a história de 1964 continue a ser
muito mal contada…"
Nenhum comentário:
Postar um comentário