Eis outra visão do problema tão grave para a vida, de uma perspectiva otimista.
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Minha vida
O neurologista diante da morte
OLIVER SACKS, COM TRADUÇÃO FRANCESCA ANGIOLILLO
Autor prolífico de livros populares de divulgação
científica, o neurologista Oliver Sacks descobriu recentemente
metástases, não tratáveis, de um câncer que tem há nove anos. Neste
texto, ele fala de como quer viver seus últimos meses e dos esforços
necessários para fazer o que chama de um acerto de contas com a vida.
Um mês atrás, eu me sentia gozando de boa saúde; diria até que de uma
saúde de ferro. Aos 81, ainda nado 1.600 metros por dia. Mas minha sorte
se esgotou --há algumas semanas, soube que tinha múltiplas metástases
no fígado. Nove anos atrás, descobri que eu tinha um tumor de olho raro,
um melanoma ocular. Apesar de as radiações e do laser para eliminar o
tumor terem me deixado cego daquele olho, era muito improvável que um
tumor daquele tipo se alastrasse. Eu estou entre os 2% desfavorecidos
pela sorte.
Sinto-me grato pelos nove anos produtivos e de boa saúde que tive após o
diagnóstico original, mas agora estou cara a cara com a morte. A doença
tomou um terço de meu fígado e, ainda que seja possível atrasar seu
passo, o avanço desse tipo particular de câncer não pode ser impedido.
O que me cabe agora é decidir como viverei os meses que me restam. Devo
vivê-los da maneira mais rica, profunda e produtiva que puder. Nisso sou
encorajado pelas palavras de um de meus filósofos favoritos, David
Hume, que, aos 65 anos, sabendo-se acometido por uma doença mortal,
escreveu, em um só dia de abril de 1776, uma breve autobiografia. Ele a
intitulou "Minha Vida".1
"Conto agora com uma morte rápida", ele escreveu. "Tenho sofrido
pouquíssima dor advinda de minha doença e, o que é mais estranho, apesar
do rápido declínio de meu corpo, meu espírito nunca se abateu um
momento sequer. [...]Possuo o mesmo ardor de sempre pelos estudos, e a
mesma alegria na companhia de outras pessoas."
Tive muita sorte de poder passar dos 80, e os 15 anos que me foram
concedidos além das seis décadas e meia que viveu Hume, eu os vivi de
forma tão plena de trabalho e amor quanto ele. Nesse período, publiquei
cinco livros e terminei uma autobiografia, um bocado mais extensa que a
dele, a sair nos próximos meses;2 tenho vários outros livros quase
concluídos.
Hume seguia: "Sou [...] um homem de disposição cordial, senhor de si
mesmo, de humor franco, social e jovial, capaz de amizade, mas pouco
suscetível a inimizades e de grande moderação em todas as suas paixões".
Nesse ponto minha experiência se afasta da dele. Embora eu tenha vivido
amores e amizades e não tenha inimizades reais, não posso dizer (nem
ninguém que me conhece poderia) que sou um homem de disposição cordial.
Ao contrário, meu caráter é veemente, sou capaz de me entusiasmar de
forma violenta e sou extremamente imoderado no que diz respeito a
qualquer de minhas paixões.
Ainda assim, uma linha do ensaio de Hume me parece especialmente
verdadeira: "É difícil", escreve, "sentir maior distanciamento da vida
do que este que sinto neste momento".
Ao longo dos últimos dias, eu pude ver minha vida como se a observasse
desde uma grande altitude, como se ela fosse uma espécie de paisagem, e
com a percepção cada vez mais aguda da conexão entre todas as suas
partes. Isso não quer dizer que eu tenha dado minha vida por encerrada.
Ao contrário: sinto-me intensamente vivo, e quero e espero que, no tempo
que resta, eu possa aprofundar minhas amizades, dizer adeus aos que
amo, escrever mais, viajar, se tiver força para tanto, alcançar novos
graus de entendimento e de discernimento.
Isso vai requerer audácia, clareza e franqueza; é uma tentativa de
acertar as contas com o mundo. Mas haverá tempo, também, para diversão
(e até mesmo para um tanto de tolices).
Sinto uma súbita nitidez de foco e de perspectiva. Não há tempo para
nada que não seja essencial. Preciso me concentrar em mim, no meu
trabalho, nos meus amigos. Não vou mais assistir ao noticiário na
televisão toda noite. Não darei mais atenção alguma à política ou ao
aquecimento global.
Isso não é indiferença, mas distanciamento --eu ainda me preocupo muito
com o Oriente Médio, aquecimento global, o crescimento da desigualdade,
mas esses assuntos não me cabem mais; eles cabem ao futuro. Eu me alegro
quando encontro gente jovem e talentosa --inclusive a que fez a biópsia
que constatou minhas metástases. Eu sinto que o futuro está em boas
mãos.
Fiquei mais e mais atento, nos últimos dez anos, à morte de
contemporâneos meus. Minha geração está de saída, e cada uma dessas
mortes eu senti de forma abrupta, como se uma parte de mim me fosse
arrancada. Não haverá mais ninguém como nós quando todos nós tivermos
ido embora, mas é um fato que não há no mundo ninguém igual a outra
pessoa, nunca. Quando alguém morre, não existe um substituto possível.
Cada um deixa um vazio que não pode ser preenchido, pois é o destino
--genético e neural--de cada humano ser um indivíduo único, que deve
achar seu próprio caminho, viver sua própria vida e morrer sua própria
morte.
Não posso fingir não ter medo. Mas o sentimento que predomina em mim é a
gratidão. Eu amei e fui amado; tive muito e dei muito em troca; eu li, e
viajei, e pensei, e escrevi. Eu tive com o mundo o relacionamento
especial que os escritores e os leitores têm com ele.
Acima de tudo, eu fui um ser senciente, um animal pensante sobre este
belo planeta, o que, por si só, já foi um enorme privilégio e uma
aventura.