O PODER E A VERDADE

No movimento de manter a continuidade do Poder de comando de um Estado, os governantes tendem à utilização de métodos muito conhecidos, criticados e renovados, campanha após campanha eleitoral, sem que eles próprios se envergonhem desses procedimentos escusos e, mais grave, sem que os eleitores percebam o engodo em que são envolvidos pelo palavreado sem sentido, no contexto de estratégias intencionalmente enganosas. Essa prática é perniciosa ao longo do tempo, pois esgarça a cidadania ao invés de fortalecê-la, desacredita aqueles que se habilitam a reivindicar o voto do eleitor e reduz o valor do humanismo no âmbito nacional e na relação entre os povos, pois os fundamentos éticos e morais deixam de ter importância.

Karl Jaspers, filósofo alemão da primeira metade do século passado, em seu livro "Introdução ao Pensamento Filosófico", fala que "Até agora, a insinceridade, a desonestidade e a mentira têm sido meios de utilização normal em política. A desonestidade, entretanto, só pode ser vantajosa por breves instantes e a expensas do futuro. A longo alcance, ela se faz inconveniente para a própria vida. A verdade é mais viável que a mentira. Estados construídos sobre a mentira decaem por adotarem procedimentos que se alimentam da tradição de mentir".

Por tudo isso, reproduzo abaixo artigo de Contardo Calligaris, focado, e adequado, ao momento político brasileiro:

Para que serve a psicanálise?


A quem luta para se manter adulto, o paternalismo dá calafrios, ou mesmo vontade de sair atirando



A ASSOCIAÇÃO Internacional de Psicanálise (IPA) foi fundada em 1910. Presente em 33 países, com mais de 12 mil membros, ela festeja seu centésimo aniversário. Aos colegas da IPA (embora eu tenha me formado numa de suas dissidências), meus sinceros parabéns.

A festa é uma boa ocasião para perguntar: para que serve, hoje, a psicanálise? A campanha eleitoral em curso me ajuda a escolher uma resposta.

Repetidamente, o presidente Lula e Dilma Rousseff se apresentam como pai e mãe dos brasileiros. Em 17/8, Lula declarou: "A palavra não é governar, a palavra é cuidar: quero ganhar as eleições para cuidar do meu povo, como a mãe cuida de seu filho".

No dia seguinte, Marina Silva comentou: "Querem infantilizar o Brasil com essa história de pai e mãe". Várias vozes (por exemplo, o editorial da Folha de 19/8) manifestaram um mal-estar; Gilberto Dimenstein resumiu perfeitamente: "Trazer a lógica familiar para a política significa colocar a criança recebendo a proteção de um pai em vez de um governante atendendo a um cidadão que paga imposto".

Entendo que um presidente ou uma candidata se apresentem como pai ou mãe do povo. Embora haja precedentes péssimos (de Vargas a Stálin, ao ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-il), estou mais que disposto a acreditar que Lula e Dilma se expressem dessa forma com as melhores intenções.

O que me choca é que eleitores possam ser seduzidos pela ideia de serem cuidados como crianças e preferi-la à de serem governados como adultos.

Se o governo for paternal ou maternal, o que o cidadão espera nunca será exigível, mas sempre outorgado como um presente concedido por generosidade amorosa; o vínculo entre cidadão e governo se parecerá com o tragipastelão afetivo da vida de família: dívidas impagáveis, culpas, ciúme passional etc. Alguém gosta disso?

Numa psicanálise, descobre-se que a vida adulta é sempre menos adulta do que parece: ela é pilotada por restos e rastos da infância. Ao longo da cura, espera-se que essa descoberta nos liberte e nos permita, por exemplo, renunciar à tutela dos pais e ao prazer (duvidoso) de encarnarmos para sempre a criança "maravilhosa" com a qual eles sonhavam e talvez ainda sonhem.

Tornar-se adulto (por uma psicanálise ou não) é um processo árduo e sempre inacabado. Por isso mesmo, a quem luta para se manter adulto, qualquer paternalismo dá calafrios -ou vontade de sair atirando, como Roberto Zucco.

Roberto Succo (com "s"), veneziano, em 1981, matou a mãe e o pai; logo, fugiu do manicômio onde fora internado e, durante anos, matou, estuprou e sequestrou pela Europa afora. Em 1989, Bernard-Marie Koltès inspirou-se na história de Succo para escrever "Roberto Zucco", peça admiravelmente encenada, hoje, em São Paulo, na praça Roosevelt, pelos Satyros.

Na peça, Zucco perpetra realmente aqueles crimes que todos perpetramos simbolicamente, para nos tornarmos adultos: "matar" o pai, a mãe e, dentro de nós, a criança que devemos deixar de ser.

O diretor da peça, Rodolfo García Vázquez, disse que Zucco é um Hamlet moderno. Claro, para Hamlet, como para Zucco, o parricídio é uma espécie de provação no caminho que leva à "maioridade". Além disso, pai, padrasto e mãe de Hamlet eram reis, e o pai de Succo era policial. Para ambos, o Estado se confundia com a família.

Se o Estado é um pai ou uma mãe para mim, eu não tenho deveres, só dívidas amorosas, e, se esse Estado me desrespeita, é que ele me rejeita, que ele trai meu amor. Por esse caminho, amado ou traído pelo Estado, nunca me considerarei como um entre outros (o que é uma condição básica da vida em sociedade), mas sempre como a menina dos olhos do poder.

Agora, se eu me sentir traído, não me contentarei em mudar meu voto, mas procurarei vingança no corpo a corpo, quem sabe arma na mão; pois essa é a linguagem da paixão e de suas decepções. O paternalismo, em suma, semeia violência.

Enfim, se é verdade que muitos prefeririam ser objeto de cuidados maternos ou paternos a serem "friamente" governados, pois bem, nesse caso, a psicanálise ainda tem várias boas décadas de utilidade pública entre nós.

É uma boa notícia para a psicanálise. Não é uma boa notícia para o mundo fora dos consultórios.



Meu comentário:

Por ser oportuno, retorno a Karl Jaspers: "Num povo livre, a opinião pública é o fórum da política. O grau de informação de que a opinião pública disponha é o critério de liberdade desse povo. O que determina o destino de todos, deve, por exigência da liberdade política, passar-se em público. A reflexão deve ser pública e preparada em público a decisão. A concordância brotará dessa base e não de confiança cega. .......Numa nação livre, o êxito do homem político depende do povo. Surge a partir de pequenos grupos profissionais, dos grupos de vizinhança, de grupos de livre debate político. Junto a esses grupos deve o político provar que é digno de confiança, que será orientador competente e capaz. Os políticos iniciam sua ascensão a partir desses grupos e não pelo recurso a uma burocracia partidária que elege, a priori, políticos profissionais. ..... Um povo livre sabe que é responsável pelos atos de seu governo. Pertencer a uma nação livre torna livre o homem e torna-o cidadão. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas."

É isso, pois! Nós somos a Nação e não podemos admitir "pai" de um lado e "mãe" de outro. Nós somos os que definem quem nos governa, e temos o direito e a obrigação de cobrar a correção, mas queremos e não podemos nos curvar a quem nos afaga. Enquanto isso, sonhemos com as propostas de Platão que, dentre elas, sobressai a que diz que "os senhores perfeitos deveriam ser chamados a governar".

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O CONTEXTO DO TEMPO E NÓS

O tempo, ah, o tempo! Nada somos no contexto do tempo e nada deixaremos a não ser lembranças, também estas, morredouras. ___________________...