MEDICAÇÃO PERIGOSA


Está em início uma reação ao modismo terapêutico de, simples e facilmente para os profissionais da área, aplicar medicamentos extremamente fortes e transformadores do comportamento. Desses produtos, muitas vezes nem sequer é conhecida a implicação correlata na saúde física e mental dos pacientes. O processo atual e vigente é claramente  um movimento de indução da indústria farmacêutica, acompanhado de uma aceitação bovina pelos terapeutas dos pretensos benefícios preconizados nas bulas.
Trago, então, à publicação, o texto abaixo que contém entrevista bastante interessante por uma das poucas vozes dissonantes da mesmice reinante.
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Estamos dando veneno para as crianças

MÉDICA ATACA INDÚSTRIA POR ESTIMULAR USO DE REMÉDIOS PSIQUIÁTRICOS PARA PACIENTES INFANTIS

A médica americana Marcia Angell, 72, ex-editora da revista especializada "NEJM" e autora do livro "A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos" 

CLÁUDIA COLLUCCI
DE WASHINGTON

Primeira mulher a ocupar o cargo de editora-chefe no bicentenário "New England Journal of Medicine", a médica Marcia Angell já foi considerada pela revista "Time" uma das 25 personalidades mais influentes nos EUA.
Desde 2004, Angell, 72, é conhecida como a mulher que tirou o sossego da indústria farmacêutica e de muitos médicos e pesquisadores que trabalham na área.
Naquele ano, ela publicou a explosiva obra "A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos", que desnuda o mercado de medicamentos.
Usando da experiência de duas décadas de trabalho no "NEJM", ela conta, por exemplo, como os laboratórios se afastaram de sua missão original de descobrir e fabricar remédios úteis para se transformar em gigantescas máquinas de marketing.
Professora do Departamento de Medicina Social da Universidade Harvard, Angell é autora de vários artigos e livros que questionam a ética na prática e na pesquisa clínica. Tornou-se também uma crítica ferrenha do sistema de saúde americano.
Tem se dedicado a escrever artigos alertando sobre o excesso de prescrição de drogas antipsicóticas, especialmente entre crianças. "Estamos dando veneno para as pessoas mais vulneráveis da sociedade", diz ela.
Mãe de duas filhas e avó de gêmeos de oito meses, ela diz que recebe muitos convites para vir ao Brasil, mas se vê obrigada a recusá-los. "Não suporto a ideia de passar horas e horas dentro de um avião." A seguir, trechos da entrevista exclusiva que ela concedeu à Folha.
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Folha - Houve alguma mudança no cenário dos conflitos de interesses entre médicos e indústria farmacêutica desde a publicação do seu livro?
Marcia Angell - Não. Os fatos continuam os mesmos. Talvez as pessoas estejam mais atentas. Há mais discussão, reportagens, livros, artigos acadêmicos sobre esses conflitos, então eles parecem estar mais sutis do que eram no passado. Mas é claro que as companhias farmacêuticas sempre encontram uma forma de manter o lucro.

E os pacientes? Algumas pesquisas mostram eles parecem não se importar muito com essas questões.
Em geral, os pacientes confiam cegamente nos seus médicos. Eles não querem ver esses problemas.
Além disso, as pessoas sempre acreditam que os medicamentos sejam muito mais eficazes do que eles realmente são. Até porque somente estudos positivos são projetados e publicados.
A mídia, os pacientes e mesmo muitos médicos acreditam no que esses estudos publicam. As pessoas creem que as drogas sejam mágicas. Para todas as doenças, para toda infelicidade, existe uma droga. A pessoa vai ao médico e o médico diz: "Você precisa perder peso, fazer mais exercícios". E a pessoa diz: "Eu prefiro o remédio".
E os médicos andam tão ocupados, as consultas são tão rápidas, que ele faz a prescrição. Os pacientes acham o médico sério, confiável, quando ele faz isso.
Pacientes têm de ser educados para o fato de que não existem soluções mágicas para os seus problemas. Drogas têm efeitos colaterais que, muitas vezes, são piores do que o problema de base.

A sra. tem escrito artigos sobre o excesso de prescrições na área da psiquiatria. Essa seria hoje uma das especialidades médicas mais conflituosas? 
Penso que sim. Há hoje um evidente abuso na prescrição de drogas psiquiátricas, especialmente para crianças.
Crianças que têm problemas de comportamento ou problemas familiares vão até o médico e saem de lá com diagnóstico de transtorno bipolar, ou TDAH [transtorno de déficit de atenção e hiperatividade]. E é claro que tem o dedo da indústria estimulando os médicos a fazer mais e mais diagnósticos.
Às vezes, a criança chega a usar quatro, seis drogas diferentes porque uma dá muitos efeitos colaterais, a outra não reduz os sintomas e outras as deixam ainda mais doentes. 
Drogas antipsicóticas estão claramente associadas ao diabetes e à síndrome metabólica. Estamos dando veneno para as pessoas mais vulneráveis da sociedade.
Pessoas que acham que isso não é assim tão terrível sempre argumentam comigo que essas crianças, em geral, chegaram a um estado tão ruim que algo precisa ser feito. Mas isso não é argumento. 

Hoje, fala-se muito em medicina personalizada. Na oncologia, há uma aposta de que drogas desenvolvidas para grupos específicos de pacientes serão uma arma eficaz no combate ao câncer. A sra. acredita nessa possibilidade?
Para mim, isso é só propaganda. Não faz o menor sentido uma companhia farmacêutica desenvolver uma droga para um pequeno número de pessoas. E que sistema de saúde aguentaria pagar preços tão altos?

Algumas escolas de medicina nos EUA começaram a cortar subsídios da indústria farmacêutica e de equipamentos na educação médica continuada. No Brasil, essa dependência é ainda muito forte. É preciso eliminar por completo esse vínculo ou há uma chance de conciliar esses interesses?
Deve ser completamente eliminado. Professores pagam para fazer cursos de educação continuada, advogados fazem o mesmo, por que os médicos não podem? A diferença é que você não precisa ir a um resort no Havaí para ter educação médica continuada. É preciso pensar em modelos de capacitação mais modestos. E, com a internet, todos os países, mesmo os pobres ou em desenvolvimento, podem fazer isso. A educação médica não pode ser financiada por quem tem interesse comercial no conteúdo dessa educação.


CONTRAPONTO

Para psicólogo, remédio ajuda hiperativos

DE SÃO PAULO

Embora haja casos de "excesso de diagnóstico" de hiperatividade em crianças, não se pode negar que, muitas vezes, o medicamento é um componente importante para melhorar a situação de quem tem a doença.
É o que defende Thiago Rivero, secretário da Sociedade Brasileira de Neuro-psicologia e pesquisador da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
"É verdade que, sozinho, o medicamento melhora o desempenho acadêmico dos meninos por apenas um ano. Depois, os efeitos desaparecem. Mas ele cria o ambiente neuronal que possibilita a melhora", afirma Rivero.
Para o pesquisador, o consenso na área é que o tratamento para crianças com distúrbio de atenção deve ser "multimodal", combinando a medicação com estratégias comportamentais, que ajudem as crianças a entender seu próprio estado mental.
"Tudo é uma questão de frequência e de intensidade. Nos pacientes em que o problema é muito intenso e muito frequente, os sintomas só poderão diminuir com o tratamento farmacêutico", afirma o pesquisador da Unifesp.


RAIO-X

MARCIA ANGELL


IDADE
72 anos

OCUPAÇÃO
Professora titular do departamento de Medicina Social da Escola Médica de Harvard e membro da Associação de Médicos Americanos

FORMAÇÃO
Graduada em medicina interna e patologia na Universidade de Boston

TRAJETÓRIA
Fez parte do corpo editorial do "New England Journal of Medicine" entre 1979 e 1999; primeira mulher a ocupar o cargo de editora-chefe no "NEJM"; eleita pela "Times", em 1997, como uma das 25 personalidades mais influentes nos EUA

PUBLICAÇÕES
É autora dos livros "A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos" (editora Record) e "Science on Trial: The Clash of Medical Evidence and the Law in Breast Implant Case" (sem tradução no Brasil)


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O CONTEXTO DO TEMPO E NÓS

O tempo, ah, o tempo! Nada somos no contexto do tempo e nada deixaremos a não ser lembranças, também estas, morredouras. ___________________...