O artigo de
Antonio Prata está uma delícia de se ler. Delícia porquê realista e, se
realista, põe-nos frente à realidade, aquela sobre a qual não pensamos, às
vezes por falta de visão dos fatos, outras por preguiça de vê-los, ou, ainda,
por pudores mantidos e conservados por crenças ou culturas mal desenvolvidas.
Enfim,
recomendo a leitura abaixo.
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Um ganso novo, bem emplumado
ANTONIO PRATA, Folha de São Paulo-07/09/2014
Pudibundo leitor, já vou logo avisando: o assunto aqui, hoje, é cocô.
Sim, cocô. Minha mulher bem que tentou me dissuadir: "Antonio, você fica
escrevendo bobagem, depois ninguém mais te leva a sério".
Bobagem? Einstein fazia cocô. Angela Merkel faz cocô. Há 2.500 anos, o
solo em que florescia o pensamento ocidental era adubado por Sócrates,
Aristóteles e Platão. Ora, bolas, carambolas: falemos sobre cocô.
Freud afirmou que o cocô é a primeira obra de um ser humano. Bem
pequenininha, a criança repara que o cocô gera certa comoção social: adultos
mudam de expressão, há movimentação pela sala, alguém a leva pro quarto e troca
sua fralda.
Os meninos que mal sentem vontade e já vão logo se aliviando serão os
futuros perdulários, os que comem a calda antes do sorvete e perdem as tampas
de todas as "Bics". Já os que esperam um bom quorum, os que seguram
até, digamos, o meio do jantar, serão os econômicos, os que têm a biblioteca
organizada por ordem alfabética com a lista atualizada no Excel.
A sociologia também se ocupou do cocô. Em "O Processo
Civilizador", Norbert Elias mostra, com elegância e erudição, como a
decadência da nobreza guerreira e o surgimento da sociedade cortesã, a partir
do século 15, mudaram a relação da humanidade com o cocô. (E também com o xixi,
o pum e os arrotos, mas o assunto aqui, hoje, é cocô).
Na literatura, o clássico que mais versa sobre o cocô é provavelmente
"Gargântua e Pantagruel", do Rabelais, com um capítulo inteiramente
dedicado às formas de se limpar. Não vou entrar em detalhes, só digo que o
método mais elogiado envolve "um ganso novo, bem emplumado".
Numa das primeiras telas do Miró, "A Fazenda", há, no centro
de uma paisagem rural, um menininho fazendo cocô. Trata-se do
"Caganer", uma figura importante do folclore catalão, que representa
a fertilidade e a ligação do homem com a terra.
Salvador Dalí, em seu "Diário de um Gênio" faz descrições
minuciosas dos próprios cocôs, os compara aos chifres dos rinocerontes e
menciona algo sobre o cone ser a forma preferida de Deus –mas
isso, provavelmente, diz mais sobre o cocô do Dalí do que sobre as predileções de Javé.
isso, provavelmente, diz mais sobre o cocô do Dalí do que sobre as predileções de Javé.
Às vezes, quando a ressaca ou a melancolia removem dos meus olhos o
"insulfilm" da normalidade, encaro a multidão num cruzamento e penso:
"Todos esses fazem cocô. Todo dia. Passai, passai e defecai em paz, pobres
mortais, até o dia em que não defecardes mais..."
Às vezes, no aeroporto, quando cinco aeromoças da KLM atravessam meu
caminho sem me dirigir sequer o branco dos seus olhos, as imagino na privada e
quase consigo me proteger de suas desoladoras belezas.
Às vezes, penso: qual será a velocidade com que sai o cocô? E penso:
entre os 7 bilhões de seres humanos sobre a Terra, há sem dúvida um cujo cocô é
o mais rápido de todos. Quem será esse sujeito, sentado sobre a própria glória,
sem saber que é um campeão?
Viu, pudibundo leitor, como o cocô pode ser instrutivo, cômico, triste,
lírico, até? Não? Achou tudo isso uma grande bobagem? Ora, não se enfeze, é
fácil se vingar de um cronista: basta atear fogo às suas palavras ou –vingança
das vinganças!– dar ao fruto do seu trabalho o mesmo fim que Gargântua daria a
"um ganso novo, bem emplumado".
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