CÂNCER: A VISÃO DE UM MÉDICO

Sem dúvida, eis uma abordagem ousada de um assunto tão crucial para a vida e, por ser polêmico, merece uma leitura atenta, especialmente procurando compreender o dilema do médico em face da inevitabilidade em que está.
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Entrevista - Richard Smith

Não há melhor forma de morrer do que de câncer

DOENÇA PERMITE SE DESPEDIR, REFLETIR E FAZER PELA ÚLTIMA VEZ O QUE QUISER, AFIRMA MÉDICO
GABRIEL ALVESDE SÃO PAULO
"Você pode dizer adeus, refletir sobre a vida, deixar mensagens, visitar lugares especiais pela última vez, ouvir as músicas favoritas, ler poemas e se preparar, de acordo com suas crenças, para encontrar seu criador ou curtir o esquecimento eterno."
Essa é a visão romântica da morte por câncer, "atingível com amor, morfina e uísque". Com ela, o médico britânico Richard Smith, 62, ex-editor da prestigioso periódico médico "British Medical Journal", causou uma polêmica de proporção global no início deste ano, quando publicou um texto sobre o tema.
"A reação foi maior do que qualquer coisa que eu tenha escrito em 40 anos", afirma.
Richard Smith falou com a Folha a respeito da polêmica e do "gasto excessivo" com pesquisa relacionada a câncer. Veja abaixo a entrevista.
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Folha - O senhor disse recentemente que a melhor maneira de morrer é pelo câncer. Como foi a repercussão? Você esperava tamanha atenção?
Richard Smith - A reação a isso foi maior do que qualquer coisa que eu tenha escrito em 40 anos de jornalismo médico. Foi uma reação global, e muitas pessoas, particularmente aqueles cujos parentes sofreram e morreram de câncer, se sentiram compreensivelmente ultrajados. Até mesmo recebi ameaças de morte. Não esperava tanta atenção, já que eu estava escrevendo principalmente para médicos.
Mas o senhor não estava tentando convencer o público em geral (ou aos médicos e cientistas) a não procurar uma cura para o câncer?
Não, mas eu penso que muito dinheiro gasto em pesquisas de câncer poderia ser melhor gasto pesquisando, por exemplo, neurociência, demência e problemas de saúde mental. Eu não penso que algum dia cheguemos a curar todos os cânceres. Muitos oncologistas e biologistas moleculares concordam. Em algum sentido, o câncer faz parte da gente.
O senhor acha que médicos geralmente discordam dos pacientes sobre a melhor maneira de morrer. Como?
Muitos médicos concordam comigo de que câncer é a melhor maneira de morrer.
Existem essencialmente quatro maneiras: morte súbita, que vem se tornando pouco comum; de demência, uma morte lenta; de falência dos órgãos, que é geralmente uma morte imprevisível; e por câncer, em que o declínio final ocorre ao longo de semanas, dando tempo para despedidas e toda sorte de preparativos.
Médicos geralmente insistem em tratar os pacientes por tempo demais, mas muitos deles mesmos optam por um tratamento menos agressivo quando é com eles.
Poucos médicos querem, por exemplo, morrer na UTI, onde cada vez mais pessoas morrem em uma morte técnica e sem alma.
O senhor é religioso?
Não. Sou ateu, mas eu me interesso por religiões. Eu gosto de pensar que eu, como tudo mundo, tenho um lado espiritual, que se manifesta para mim através da música, poesia, e longas caminhadas em meio à natureza.
As pessoas muitas vezes tentam não pensar a respeito da morte. O senhor acha que isso traz mais mal do que bem?
Eu tenho certeza que nunca pensar a respeito da própria morte faz mal. Os filósofos estoicos, como Sêneca, mostraram claramente que contemplar a própria morte não só leva a uma morte melhor como a uma vida melhor. Uma aceitação por inteiro da morte significa uma vida plena. Para mim a morte dá significado à vida. É um ciclo natural.
Além disso, pessoas que nunca pensam na morte geralmente estão mal preparadas quando ficam doentes e próximas dela. Eu acho que todas as pessoas devem ter de modo claro o que quer que aconteça com elas quando a morte se aproximar.
O senhor pensa que a formação dos médicos é adequada?
O treinamento de médicos tem que mudar na medida em que os padrões de doenças mudam. Nós vivemos em um mundo de pacientes, a maioria idosos, com múltiplos problemas, muitos crônicos, como diabetes ou hipertensão.
O modelo quando eu estava na faculdade, nos anos 70, era "diagnóstico, tratamento e cura". Quando alguém tem meningite, esse é o modelo: o que o médico faz determina se o paciente sobrevive.
Mas hoje o diagnóstico é menos importante porque nós, em geral, já sabemos o que os pacientes têm, e o tratamento depende mais deles que do médico: mudanças no estilo de vida e adaptação às condições impostas por doenças crônicas. Há pouca cura, a maioria das doenças ficarão presentes por toda a vida.


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O CONTEXTO DO TEMPO E NÓS

O tempo, ah, o tempo! Nada somos no contexto do tempo e nada deixaremos a não ser lembranças, também estas, morredouras. ___________________...