Em setembro deste ano, o autor escreveu o texto abaixo para o
jornal Folha de São Paulo, pelo qual ele ajuda a abrirmos os olhos para sair da
padronização de costumes e de pensamento. Devemos manter nosso pensamento,
nosso ponto de vista, nossa ação, desde
que mentidos em parâmetros legais, culturais e aceitáveis na sociedade em que
vivemos, independentemente do quê pensam os demais. Perceba-se, ainda, que o
autor dá duas estocadas no “politicamente correto”, comportamento que foi
estabelecido como paradigma atual, mas que devemos rediscuti-lo, senão corremos
o risco de acefalia ou de ambliopia mental.
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É NATURAL
Por FRANCISCO DAUDT
Desconfie do 'a vida é assim mesmo', discuta as regras para
ver se você as cumpre por gosto ou por obrigação
O pensamento do filósofo Baruch (abençoado, em hebraico =
Benedito = Bento) Spinoza sobre a liberdade poderia ser definido assim:
"ela consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam". Repare que
ele não reconhecia a liberdade como coisa de existência verdadeira, mas
poderíamos ampliá-la um pouco se aliviássemos, ao conhecê-los, os puxões dos
cordéis.
Outro grande, Schopenhauer (bem lembrado por um leitor), disse
que podemos até ter vontades, mas não podemos escolher nossos desejos. Tenho
escrito sobre a natureza humana para que saibamos como somos manipulados.
O que me lembrou a portuguesa avó Lucia, de uma amiga querida,
que a tudo reagia com o mesmo bordão: "É natural", por mais
estapafúrdia que a coisa fosse. "Vó, o padre fugiu com a vizinha!"
"É natural, pois..."
Ela se defendia dos sustos da vida com o uso sistemático da
naturalização. A naturalização não tem nada a ver com constatar as forças da
natureza sobre nós. Ela é o processo da formação do senso comum, talvez o
cordel mais forte que a cultura usa para mandar em nós.
Minha mãe quis ter oito filhos (teve sete). Por que tantos?
"Porque em 1937 era bonito ter família grande, minhas amigas tinham".
Era "natural". Tão natural quanto hoje ter dois. Se você quiser mais,
o senso comum vai te patrulhar, "que absurdo, você tá louca?". O
feminismo naturalizou a tripla jornada de trabalho para a mulher (ganhar dinheiro; gerenciar a casa, marido e filhos). Nascido em 1948,
cresci tendo que cumprir uma linha de montagem: escolaridade, formatura
(médico, engenheiro ou advogado), casar, ser provedor e ter filhos. Era
natural. Eu me perguntei se queria isto? Claro que não. Tinha medo de ir "contra
o natural". É a surda ditadura do senso comum. Hoje ela se estende ao
"politicamente correto", um meio de formar rebanhos. A coisa está
ficando afrodescendente...
Então este é um aviso: você é manipulado, sua inteligência é
posta de lado em favor da obediência ao "que todo mundo faz". Ao
mesmo tempo, é sedutora a ideia de que há manipuladores, superiores
aos manipulados, e que é bom ser um deles. Mas você já é um
manipulador/manipulado, todos o somos.
Um general manda na tropa, mas a mulher manda nele. Manipulação
existe. Somos todos seus agentes e pacientes. Se eu for menos ativo e passivo
dela, a manipulação diminuirá.
Desconfie do "é natural", que "a vida é assim
mesmo". Discuta regras ocultas da ficância, do namoro, do casamento, para
ver se você as cumpre por gosto ou por obrigação. Escancare-as!
Atenção com o implícito, com a alusão. As regras do senso comum
nunca são faladas abertamente, ou saberíamos discuti-las. A patrulha se dá por
punições sutis (suspiros, trombas e gelos). Também valem adjetivos
reducionistas, "Isto é fascismo! Você é neoliberal!" (quem os usa já
está dominado).
Claro, a patrulha também pode ser explícita, matar e espancar
gays, porque eles são excessivamente não "naturais", entende? Mas vir
dizer que "a diferença é linda" também é outra tentativa de
naturalização que eu não aguento.
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