Senti-me na obrigação de compartilhar o texto
de autoria de Miguel Srougi, no jornal Folha de São Paulo, de 06/01/2012. É
necessário que vozes sábias do meio médico sejam ouvidas, numa tentativa de
ativar a lucidez governamental, se isto for possível, e institucional da
medicina, se houver coragem para tanto, no sentido de, primeiro, desconcentrar
regionalmente a formação e a localização de médicos e, em segundo lugar, de
tornar os estudantes de ontem, em médicos verdadeiramente capazes hoje. Para salientar
parte do texto de Miguel, quando ele cita personagem de Guimarães Rosa:
"um sentir é o do sentente, mas o outro é o do sentidor". Utilizando
a linguagem do futebol, é necessário aperfeiçoar essa atividade de
meio-de-campo.
Médicos
inaptos: algozes ou vítimas?
MIGUEL
SROUGI
Mais importante
do que abrir faculdades é aumentar as vagas para
residência. Novos médicos são vítimas de um enredo perverso
Os últimos dias não foram de felicidade para os
brasileiros. Entre outros motivos, descobriram que 54,5% dos médicos
recém-formados da nação são inaptos para a profissão.
Não fiquei surpreso com o número e com a
indignação. Afinal, lideranças e educadores médicos já conheciam a indecência
e, impotentes, nunca conseguiram eliminá-la. Sem tergiversar, julgo que
profissionais inaptos devem ser impedidos de exercer a profissão e que uma
legislação impondo um exame de capacitação dos novos médicos já deveria ter
sido promulgada.
Contudo, não posso deixar de expressar certa
angústia quando dirijo um olhar a esse grupo. Confesso que nunca me deparei com
um médico recém-formado que não acalentasse o sonho de se tornar um
profissional respeitado. Se isso não se concretiza, suspeito que outras razões
produzem o descompasso. Entre elas, a mistura de uma sociedade complacente e
governantes incompetentes.
Como ignorar a influência negativa da sociedade,
que se rejubila com a abertura de novas escolas médicas, iludida pela ideia de
que estão sendo criadas maioresoportunidades para seus jovens? Cedendo a esses
apelos e à pressão de empresários oportunistas, o governo federal autorizou,
entre 2000 e 2012, a abertura de 98 novas faculdades, perfazendo um total de
198 escolas no país; nos Estados Unidos, habitado por 314,3 milhões de pessoas,
existem 137 instituições similares.
Numa nação de dimensões continentais e
insuportável desigualdade, seria racional que as novas escolas médicas fossem
acomodadas em regiões remotas do Brasil. Contudo, 70% delas foram instaladas na
região sudeste, rica e congestionada, e 74% são de natureza privada, cobrando
taxas exorbitantes de alunos.
Contrariando as leis vigentes, a maioria desses
centros não dispõe de instalações hospitalares adaptadas para o ensino e
carecem de corpo docente qualificado. Isso indica que o processo foi norteado
por interesses políticos menores e pelo anseio do lucro desmedido e predador.
Agravando esse cenário, autoridades federais têm
dado demonstrações adicionais de inconsequência e de tolerância suspeita. Uma
comissão especial do MEC presidida pelo professor Adib Jatene descredenciou, há
um ano, algumas escolas médicas, pela baixa qualidade de ensino. De forma
misteriosa e inexplicável, a Comissão Nacional de Educação cancelou, em
fevereiro passado, a ação corretiva adotada. Resolução nefasta para a sociedade
brasileira e auspiciosa para os mesmos predadores da nação.
Nossa presidente anunciou sua disposição de abrir
mais 4.500 vagas para alunos de medicina (algo como 55 novas escolas). Num
momento em que as universidade federais se encontram em estado de penúria, essa
meta torna-se um devaneio descompassado com a realidade da nação.
Mais importante do que criar novas faculdades
seria aumentar as vagas para residência médica. Cerca de 6.000 novos médicos
formados a cada ano não dispõem de locais para realizar a residência, a etapa
mais relevante para a formação de profissionais qualificados.
Outra proposta governamental, tão cândida quando
descabida, é autorizar o trabalho em nosso país de médicos patrícios formados
no exterior, sem exames de proficiência. Se 54,5% de médicos recém-formados
inaptos causam indignação, como reagir ao fato de que em 2011, num exame
oficial de revalidação de diplomas de 677 médicos graduados no exterior, 90,5%
deles foram considerados inaptos?
Termino referindo-me a uma realidade que
Riobaldo, o jagunço-filósofo de Guimarães Rosa, soube muito bem descortinar.
"Um sentir é o do sentente, mas o outro é do sentidor." Reconheço que
as inquietações expressas sobre as aptidões dos recém-formados são justificadas
por quem sente de fora. Mas como um dos que sentem de dentro, não posso deixar
de dizer que, ao invés de algozes, a imensa maioria dos novos médicos da nação
são vítimas de um enredo perverso que mistura uma sociedade permissiva, escolas
médicas deficientes e governantes incapazes. Que transformam esperanças
incontidas em sonhos frustrados.
MIGUEL
SROUGI, 66, pós-graduado em urologia
pela Universidade de Harvard (EUA), é professor titular de urologia da
Faculdade de Medicina da USP e presidente do conselho do Instituto Criança é
Vida
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