Leio pouco da Eliane por não frequentar as mesmas páginas por onde ela circula, ou por não
ter o hábito de acessar certos aspectos da rede onde situa o seu
pensamento. Mas, certamente, darei mais atenção à sua escrita, que
contém o seu pensamento, após ler o texto "A mais maldita das heranças
do PT", não apenas por ali conter críticas a um agrupamento de pessoas e
de interesses menos republicanos e mais, muito mais!, fundamentos
pessoais e de poder, com o qual não concordo, mas por estar ali exposta
uma escrita ponderada contendo uma visão equilibrada da situação
ambivalente da política brasileira. Como o texto está escrito para o "El
País", penso que ele seja útil para que as pessoas de fora consigam
estruturar um pensamento equidistante dos extremos sobre o quê ocorre no
Brasil.
É um belo mas longo texto, valendo a pena sua leitura.
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Escrito por Eliane Brum, para o jornal "El País"
A mais maldita das heranças do PT
O maior risco para o PT, para além do
governo e do atual mandato, talvez não seja a multidão que ocupou as ruas do
Brasil, mas a que não estava lá. São os que não estavam nem no dia 13 de março,
quando movimentos como CUT, UNE e MST organizaram uma manifestação que, apesar de críticas a medidas de
ajuste fiscal tomadas pelo governo, defendia a presidente Dilma Rousseff.
Nem estavam no já histórico domingo, 15 de março, quando centenas de milhares
de pessoas aderiram aos protestos, em várias capitais e cidades do país, em
manifestações contra Dilma Rousseff articuladas nas redes sociais da
internet, com bandeiras que defendiam o fim da corrupção, o impeachment da
presidente e até uma aterradora, ainda que minoritária, defesa da volta da
ditadura. São os que já não sairiam de casa em dia nenhum empunhando uma
bandeira do PT, mas que também não atenderiam ao chamado das forças de
15 de março, os que apontam que o partido perdeu a capacidade de
representar um projeto de esquerda – e gente de esquerda. É essa herança do PT
que o Brasil, muito mais do que o partido, precisará compreender. E é com ela
que teremos de lidar durante muito mais tempo do que o desse mandato.
Tenho dúvidas sobre a tecla tão batida por esses
dias do Brasil polarizado. Como se o país estivesse dividido em dois polos
opostos e claros. Ou, como querem alguns, uma disputa de ricos contra pobres.
Ou, como querem outros, entre os cidadãos contra a corrupção e os beneficiados
pela corrupção. Ou entre os a favor e os contra o governo. Acho que a narrativa
da polarização serve muito bem a alguns interesses, mas pode ser falha para a
interpretação da atual realidade do país. Se fosse simples assim, mesmo com a
tese do impeachment nas ruas, ainda assim seria mais fácil para o PT.
Algumas considerações prévias. Se no segundo turno
das eleições de 2014, Dilma Rousseff ganhou por uma pequena margem – 54.501.118
votos contra 51.041.155 de Aécio Neves –, não há dúvida de que ela
ganhou. Foi democraticamente eleita, fato que deve ser respeitado acima de
tudo. Não existe até esse momento nenhuma base para impeachment,
instrumento traumático e seríssimo que não pode ser manipulado com leviandade,
nem mesmo no discurso. Quem não gostou do resultado ou se arrependeu do voto,
paciência, vai ter de esperar a próxima eleição. Os resultados valem também
quando a gente não gosta deles. E tentar o contrário, sem base legal, é para
irresponsáveis ou ignorantes ou golpistas.
No resultado das eleições ampliou-se a ressonância
da tese de um país partido e polarizado. Mas não me parece ser possível
esquecer que outros 37.279.085 brasileiros não escolheram nem Dilma nem Aécio,
votando nulo ou branco e, a maior parte, se abstendo de votar. É muita gente –
e é muita gente que não se sentia representada por nenhum dos dois candidatos,
pelas mais variadas razões, à esquerda e também à direita, o que complica um
pouco a tese da polarização. Além das divisões entre os que se polarizariam em
um lado ou outro, há mais atores no jogo que não estão nem em um lado nem em
outro. E não é tão fácil compreender o papel que desempenham. No mesmo sentido,
pode ser muito arriscado acreditar que quem estava nos protestos neste domingo
eram todos eleitores de Aécio Neves. A rua é, historicamente, o
território das incertezas – e do incontrolável.
Há lastro na realidade para afirmar também que uma
parte dos que só aderiram à Dilma Rousseff no segundo turno era composta
por gente que acreditava em duas teses amplamente esgrimidas na internet às
vésperas da votação: 1) a de que Dilma, assustada por quase ter
perdido a eleição, em caso de vitória faria “uma guinada à esquerda”, retomando
antigas bandeiras que fizeram do PT o PT; 2) a de votar em
Dilma “para manter as conquistas sociais” e “evitar o mal maior”, então
representado por Aécio e pelo PSDB. Para estes, Dilma Rousseff
não era a melhor opção, apenas a menos ruim para o Brasil. E quem pretendia
votar branco, anular o voto ou se abster seria uma espécie de traidor da
esquerda e também do país e do povo brasileiro, ou ainda um covarde, acusações
que ampliaram, às vésperas das eleições, a cisão entre pessoas que costumavam
lutar lado a lado pelas mesmas causas. Neste caso, escolhia-se ignorar,
acredito que mais por desespero eleitoral do que por convicção, que votar nulo,
branco ou se abster também é um ato político.
Faz sentido suspeitar que uma fatia significativa
destes que aderiram à Dilma apenas no segundo turno, que ou esperavam
“uma guinada à esquerda” ou “evitar o mal maior”, ou ambos, decepcionaram-se
com o seu voto depois da escolha de ministros como Kátia Abreu e Joaquim Levy,
à direita no espectro político, assim como com medidas que afetaram os direitos
dos trabalhadores. Assim, se a eleição fosse hoje, é provável que não votassem
nela de novo. Esses arrependidos à esquerda aumentariam o número de eleitores
que, pelas mais variadas razões, votaram em branco, anularam ou não
compareceram às urnas, tornando maior o número de brasileiros que não se sentem
representados por Dilma Rousseff e pelo PT, nem se sentiriam
representados por Aécio Neves e pelo PSDB.
Esses arrependidos à esquerda, assim como todos
aqueles que nem sequer cogitaram votar em Dilma Rousseff nem em Aécio
Neves porque se situam à esquerda de ambos, tampouco se sentem
identificados com qualquer um dos grupos que foi para as ruas no domingo contra
a presidente. Para estes, não existe a menor possibilidade de ficar ao lado de
figuras como o deputado federal Jair Bolsonaro (PP) ou de defensores da
ditadura militar ou mesmo de Paulinho da Força. Mas também não havia
nenhuma possibilidade de andar junto com movimentos como CUT, UNE
e MST, que para eles “pelegaram” quando o PT chegou ao poder:
deixaram-se cooptar e esvaziaram-se de sentido, perdendo credibilidade e adesão
em setores da sociedade que costumavam apoiá-los.
Essa parcela da esquerda – que envolve desde
pessoas mais velhas, que historicamente apoiaram o PT, e muitos até que
ajudaram a construí-lo, mas que se decepcionaram, assim como jovens filhos
desse tempo, em que a ação política precisa ganhar horizontalidade e se
construir de outra maneira e com múltiplos canais de participação efetiva – não
encontrou nenhum candidato que a representasse. No primeiro turno, dividiram
seus votos entre os pequenos partidos de esquerda, como o PSOL, ou
votaram em Marina Silva, em especial por sua compreensão da questão ambiental
como estratégica, num mundo confrontado com a mudança climática, mas votaram
com dúvidas. No segundo turno, não se sentiram representados por nenhum dos
candidatos.
Marina Silva foi quem chegou mais perto de ser uma figura com
estatura nacional de representação desse grupo à esquerda, mais em 2010 do que
em 2014. Mas fracassou na construção de uma alternativa realmente nova dentro
da política partidária. Em parte por não ter conseguido registrar seu partido a
tempo de concorrer às eleições, o que a fez compor com o PSB, sigla bastante
complicada para quem a apoiava, e assumir a cabeça de chapa por conta de uma
tragédia que nem o mais fatalista poderia prever; em parte por conta da
campanha mentirosa e de baixíssimo nível que o PT fez contra ela; em
parte por equívocos de sua própria campanha, como a mudança do capítulo do
programa em que falava de sua política para os LGBTs, recuo que, além de
indigno, só ampliou e acentuou a desconfiança que muitos já tinham com relação
à interferência de sua fé evangélica em questões caras como casamento
homoafetivo e aborto; em parte porque escolheu ser menos ela mesma e mais uma
candidata que supostamente seria palatável para estratos da população que
precisava convencer. São muitas e complexas as razões.
O que aconteceu com Marina Silva em 2014
merece uma análise mais profunda. O fato é que, embora ela tenha ganhado, no
primeiro turno de 2014, cerca de 2,5 milhões de votos a mais do que em 2010,
seu capital político parece ter encolhido, e o partido que está construindo, a Rede
Sustentabilidade, já sofreu deserções de peso. Talvez ela ainda tenha
chance de recuperar o lugar que quase foi seu, mas não será fácil. Esse é um
lugar vago nesse momento.
Há uma parcela politizada, à esquerda, que hoje não
se sente representada nem pelo PT nem pelo PSDB, não participou
de nenhum dos panelaços nem de nenhuma das duas grandes manifestações dos
últimos dias, a de 15 de março várias vezes maior do que a do dia 13. É, porém,
muito atuante politicamente em várias áreas e tem grande poder de articulação
nas redes sociais. Não tenho como precisar seu tamanho, mas não é desprezível.
É com essa parcela de brasileiros, que votou em Lula e no PT por
décadas, mas que deixou de votar, ou de jovens que estão em movimentos
horizontais apartidários, por causas específicas, que apontam o que de fato
deveria preocupar o PT, porque esta era ou poderia ser a sua base, e foi
perdida.
A parcela de esquerda que não bateria panelas
contra Dilma Rousseff, mas também não a defenderia, aponta a falência do
PT em seguir representando o que representou no passado. Aponta que, em
algum momento, para muito além do Mensalão e da Lava Jato, o PT escolheu se
perder da sua base histórica, numa mistura de pragmatismo com arrogância. É
possível que o PT tenha deixado de entender o Brasil. Envelhecido, não
da forma desejável, representada por aqueles que continuam curiosos em
compreender e acompanhar as mudanças do mundo, mas envelhecido da pior forma,
cimentando-se numa conjuntura histórica que já não existe. E que não voltará a
existir. Essa aposta arriscada precisa que a economia vá sempre bem; quando vai
mal, o chão desaparece.
Fico perplexa quando lideranças petistas, e mesmo Lula,
perguntam-se, ainda que retoricamente, por que perderam as ruas. Ora, perderam
porque o PT gira em falso. O partido das ruas perdeu as ruas – menos
porque foi expulso, mais porque se esqueceu de caminhar por elas. Ou, pior,
acreditou que não precisava mais. Nesse contexto, Dilma Rousseff é só a
personagem trágica da história, porque em algum momento Lula, com o aval ativo
ou omisso de todos os outros, achou que poderia eleger uma presidente que não
gosta de fazer política. Estava certo a curto prazo, podia. Mas sempre há o dia
seguinte.
Não adianta ficar repetindo que só bateu panela
quem é da elite. Pode ter sido maior o barulho nos bairros nobres de São Paulo,
por exemplo, mas basta um pequeno esforço de reportagem para constatar que
houve batuque de panelas também em bairros das periferias. Ainda que as panelas
batessem só nos bairros dos ricos e da classe média, não é um bom caminho
desqualificar quem protesta, mesmo que você ou eu não concordemos com a mensagem,
com termos como “sacada gourmet” ou “panelas Le Creuset”. Todos têm direito de
protestar numa democracia e muitos dos que ridicularizam quem protestou
pertencem à mesma classe média e talvez tenham uma ou outra panelinha Le
Creuset ou até pagou algumas prestações a mais no apartamento para ter uma
sacada gourmet, o que não deveria torná-los menos aptos nem a protestar nem a
criticar o protesto.
Nos panelaços, só o que me pareceu inaceitável foi
chamar a presidente de “vagabunda” ou de “vaca”, não apenas porque é
fundamental respeitar o seu cargo e aqueles que a elegeram, mas também porque
não se pode chamar nenhuma mulher dessa maneira. E, principalmente, porque o
“vaca” e o “vagabunda” apontam a quebra do pacto civilizatório. É nesses
xingamentos, janela a janela, que está colocado o rompimento dos limites, o
esgarçamento do laço social. Assim como, no domingo de 15 de março, essa
ruptura esteve colocada naqueles que defendiam a volta da ditadura. Não há
desculpa para desconhecer que o regime civil militar que dominou o Brasil pela
força por 21 anos torturou gente, inclusive crianças, e matou gente. Muita
gente. Assim, essa defesa é inconstitucional e criminosa. Com isso, sim,
precisamos nos preocupar, em vez de misturar tudo numa desqualificação rasteira.
É urgente que a esquerda faça uma crítica (e uma autocrítica) consistente, se
quiser ter alguma importância nesse momento agudo do país.
Também não adianta continuar afirmando que quem foi
para as ruas é aquela fatia da população que é contra as conquistas sociais
promovidas pelo governo Lula, que tirou da miséria milhões de
brasileiros e fez com que outros milhões ascendessem ao que se chamou de classe
C. Pessoas as quais é preciso respeitar mais pelo seu passado do que pelo seu
presente ficaram repetindo na última semana que quem era contra o PT não
gostava de pobres nos aeroportos ou estudando nas universidades, entre outras
máximas. É fato que existem pessoas incomodadas com a mudança histórica que o PT
reconhecidamente fez, mas dizer que toda oposição ao PT e ao governo é composta
por esse tipo de gente, ou é cegueira ou é má fé.
Num momento tão acirrado, todos que têm expressão
pública precisam ter muito mais responsabilidade e cuidado para não aumentar
ainda mais o clima de ódio – e disseminar preconceitos já se provou um caminho
perigoso. Até a negação deve ter limites. E a negação é pior não para esses
ricos caricatos, mas para o PT, que já passou da hora de se olhar no
espelho com a intenção de se enxergar. De novo, esse discurso sem rastro na
realidade apenas gira em falso e piora tudo. Mesmo para a propaganda e para o
marketing, há limites para a falsificação da realidade. Se é para fazer
publicidade, a boa é aquela capaz de captar os anseios do seu tempo.
É também por isso que me parece que o grande
problema para o PT não é quem foi para as ruas no domingo, nem quem
bateu panela, mas quem não fez nem uma coisa nem outra, mas também não tem a
menor intenção de apoiá-lo, embora já o tenha feito no passado ou teria feito
hoje se o PT tivesse respeitado as bandeiras do passado. Estes apontam o
que o PT perdeu, o que já não é, o que possivelmente não possa voltar a
ser.
O PT traiu algumas de suas bandeiras de
identidade, aquelas que fazem com que em seu lugar seja preciso colocar
máscaras que não se sustentam por muito tempo. Traiu não apenas por ter aderido
à corrupção, que obviamente não foi inventada por ele na política brasileira,
fato que não diminui em nada a sua responsabilidade. A sociedade brasileira,
como qualquer um que anda por aí sabe, é corrupta da padaria da esquina ao
Congresso. Mas ser um partido “ético” era um traço forte da construção concreta
e simbólica do PT, era parte do seu rosto, e desmanchou-se. Embora ainda
existam pessoas que merecem o máximo respeito no PT, assim como núcleos de
resistência em determinadas áreas, secretarias e ministérios, e que precisam
ser reconhecidos como tal, o partido traiu causas de base, aquelas que fazem
com que se desconheça. Muitos dos que hoje deixaram de militar ou de apoiar o PT
o fizeram para serem capazes de continuar defendendo o que o PT
acreditava. Assim como compreenderam que o mundo atual exige interpretações
mais complexas. Chamar a estes de traidores ou de fazer o jogo da direita é de
uma boçalidade assombrosa. Até porque, para estes, o PT é a direita.
A parcela à esquerda que preferiu ficar fora de
manifestações a favor ou contra lembra que tão importante quando discutir a
corrupção na Petrobras é debater a opção por combustíveis fósseis que a
Petrobras representa, num momento em que o mundo precisa reduzir radicalmente
suas emissões de gases do efeito estufa. Lembra que estimular a compra de
carros como o governo federal fez é contribuir com o transporte privado
individual motorizado, em vez de investir na ampliação do transporte público coletivo,
assim como no uso das bicicletas. É também ir na contramão ao piorar as
condições ambientais e de mobilidade, que costumam mastigar a vida de milhares
de brasileiros confinados por horas em trens e ônibus lotados num trânsito que
não anda nas grandes cidades. Lembra ainda que estimular o consumo de energia
elétrica, como o governo fez, é uma irresponsabilidade não só econômica, mas
socioambiental, já que os recursos são caros e finitos. Assim como olhar para o
colapso da água visando apenas obras emergenciais, mas sem se preocupar com a
mudança permanente de paradigma do consumo e sem se preocupar com o
desmatamento tanto da floresta amazônica quanto do Cerrado quanto das nascentes
do Sudeste e dos últimos redutos sobreviventes de Mata Atlântica fora e dentro
das cidades é um erro monumental a médio e a longo prazos.
Os que não bateram panelas contra o PT e que
não bateriam a favor lembram que a forma de ver o país (e o mundo) do lulismo
pode ser excessivamente limitada para dar conta dos vários Brasis. Povos
tradicionais e povos indígenas, por exemplo, não cabem nem na categoria
“pobres” nem na categoria “trabalhadores”. Mas, ao fazer grandes hidrelétricas
na Amazônia, ao ser o governo de Dilma Rousseff o que menos demarcou terras
indígenas, assim como teve desempenho pífio na criação de reservas
extrativistas e unidades de conservação, ao condenar os povos tradicionais ao
etnocídio ou à expulsão para a periferia das cidades, é em pobres que são
convertidos aqueles que nunca se viram nesses termos. Em parte, a construção
objetiva e simbólica de Lula – e sua forma de ver o Brasil e o mundo –
encarna essa contradição (escrevi sobre isso aqui), que o PT não foi
capaz nem quis ser capaz de superar no poder. Em vez de enfrentá-la, livrou-se
dos que a apontavam, caso de Marina Silva.
O PT no governo priorizou um projeto de
desenvolvimento predatório, baseado em grandes obras, que deixou toda a
complexidade socioambiental de fora. Escolha inadmissível num momento em que a
ação do homem como causa do aquecimento global só é descartada por uma minoria
de céticos do clima, na qual se inclui o atual ministro de Ciência e
Tecnologia, Aldo Rebelo, mais uma das inacreditáveis escolhas de Dilma
Rousseff. A síntese das contradições – e também das traições – do PT no
poder não é a Petrobras, mas Belo Monte. Sobre a usina hidrelétrica já pesa a
denúncia de que só a construtora Camargo Corrêa teria pagado mais de R$ 100
milhões em propinas para o PT e para o PMDB. É para Belo Monte
que o país precisaria olhar com muito mais atenção. É na Amazônia, onde o PT
reproduziu a visão da ditadura ao olhar para a floresta como um corpo para a
exploração, que as fraturas do partido ao chegar ao poder se mostram em toda a
sua inteireza. E é também lá que a falácia de que quem critica o PT é
porque não gosta de pobre vira uma piada perversa.
A sorte do PT é que a Amazônia é longe para a
maioria da população e menos contada pela imprensa do que deveria, ou contada a
partir de uma visão de mundo urbana que não reconhece no outro nem a diferença
nem o direito de ser diferente. Do contrário, as barbaridades cometidas pelo PT
contra os trabalhadores pobres, os povos indígenas e as populações
tradicionais, e contra uma floresta estratégica para o clima, para o presente e
para o futuro, seriam reconhecidas como o escândalo que de fato são. É também
disso que se lembram aqueles que não gritaram contra Dilma Rousseff, mas
também não a defenderiam.
Lembram também que o PT não fez a reforma
agrária; ficou aquém na saúde e na educação, transformando “Brasil, Pátria Educadora” num slogan natimorto;
avançou muito pouco numa política para as drogas que vá além da proibição e da
repressão, modelo que encarcera milhares de pequenos traficantes num sistema
prisional sobre o qual o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, já disse que
“prefere morrer a cumprir pena”; cooptou grande parte dos movimentos sociais
(que se deixaram cooptar por conveniência, é importante lembrar); priorizou a
inclusão social pelo consumo, não pela cidadania; recuou em questões como o kit
anti-homofobia e o aborto; se aliou ao que havia de mais viciado na política
brasileira e aos velhos clãs do coronelismo, como os Sarney.
Isso é tão ou mais importante do que a corrupção,
sobre a qual sempre se pode dizer que começou bem antes e atravessa a maioria
dos partidos, o que também é verdade. Olhar com honestidade para esse cenário
depois de mais de 12 anos de governo petista não significa deixar de reconhecer
os enormes avanços que o PT no poder também representou. Mas os avanços
não podem anular nem as traições, nem os retrocessos, nem as omissões, nem os
erros. É preciso enfrentar a complexidade, por toda as razões e porque ela diz
também sobre a falência do sistema político no qual o país está atolado, para
muito além de um partido e de um mandato.
Há algo que o PT sequestrou de pelo menos
duas gerações de esquerda e é essa a sua herança mais maldita. E a que vai
marcar décadas, não um mandato. Tenho entrevistado pessoas que ajudaram a
construir o PT, que fizeram dessa construção um projeto de vida,
concentradas em lutas específicas. Essas pessoas se sentem traídas porque o
partido rasgou suas causas e se colocou ao lado de seus algozes. Mas não
traídas como alguém de 30 anos pode se sentir traído em seus últimos votos.
Este tem tempo para construir um projeto a partir das novas experiências de
participação política que se abrem nesse momento histórico muito particular. Os
mais velhos, os que estiveram lá na fundação, não. Estes sentem-se traídos como
alguém que não tem outra vida para construir e acreditar num novo projeto. É
algo profundo e também brutal, é a própria vida que passa a girar em falso, e
justamente no momento mais crucial dela, que é perto do fim ou pelo menos nas
suas últimas décadas. É um fracasso também pessoal, o que suas palavras
expressam é um testemunho de aniquilação. Algumas dessas pessoas choraram neste
domingo, dentro de casa, ao assistir pela TV o PT perder as ruas, como se
diante de um tipo de morte.
O PT, ao trair alguns de seus ideias mais
caros, escavou um buraco no Brasil. Um bem grande, que ainda levará tempo para
virar marca. Não adianta dizer que outros partidos se corromperam, que outros
partidos recuaram, que outros partidos se aliaram a velhas e viciadas raposas
políticas. É verdade. Mas o PT tinha um lugar único no espectro partidário
da redemocratização, ocupava um imaginário muito particular num momento em que
se precisava construir novos sentidos para o Brasil. Era o partido “diferente”.
Quem acreditou no PT esperou muito mais dele, o que explica o tamanho da dor
daqueles que se desfiliaram ou deixaram de militar no partido. A decepção é
sempre proporcional à esperança que se tinha depositado naquele que nos
decepciona.
É essa herança que precisamos entender melhor, para
compreender qual é a profundidade do seu impacto no país. E também para pensar
em como esse vácuo pode ser ocupado, possivelmente não mais por um partido,
pelo menos não um nos moldes tradicionais. Como se sabe, o vácuo não se mantém.
Quem acredita em bandeiras que o PT já teve precisa parar de brigar
entre si – assim como de desqualificar todos os outros como “coxinhas” – e
encontrar caminhos para ocupar esse espaço, porque o momento é limite. O PT
deve à sociedade brasileira um ajuste de contas consigo mesmo, porque o
discurso dos pobres contra ricos já virou fumaça. Não dá para continuar
desconectado com a realidade, que é só uma forma estúpida de negação.
Para o PT, a herança mais maldita que
carrega é o silêncio daqueles que um dia o apoiaram, no momento em que perde as
ruas de forma apoteótica. O PT precisa acordar, sim. Mas a esquerda
também.
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