Há
quarenta anos li no JB a fábula relatada abaixo e a guardei por todos
esses anos, pois sempre a vi como o retrato perfeito da situação
administrativa e comportamental dos sucessivos governos pelos quais
passamos. Especialmente neste momento que ainda vivenciamos, quando
obras para a copa de futebol que ocorreu há quase um ano ainda não estão
concluídas, ou nem sequer foram iniciadas, ou, pior que tudo, já estão
na segunda e até terceira reforma ou conserto, é pertinente lermos o
texto irônico do escriba. Mencionei as obras da copa, por comporem o
fato mais escabroso da inoperância e da incompetência governamentais,
mas a crítica pode ser estendida a todas as outras malsucedidas
iniciativas arrotadas pela grandeza sonhadora dos boquirrotos
governamentais de plantão, e que continuam a flagelar os usuários das
rodovias, dos aeroportos, dos portos, da saúde pública, da segurança, da
falta de água e por aí vai.
Ademais,
a fábula tem um quê de crítica à cultura de acomodação e de vivas ao
comodismo que entroniza datas comemorativas e feriados religiosos num
calendário de um país que precisa trabalhar para formar suas gerações,
mas que não o faz, pois prefere o ócio. Fico triste quando acompanho
movimentos populares, com as consequentes movimentações politiqueiras,
que apoiam a criação de feriados disso e daquilo, mas, também, fico
alegre quando essas iniciativas não vingam.
Assim, lê o texto abaixo e sentirás viver o ontem e o hoje da mesma forma.
____________________________________________
A FÁBULA DE DEUS, DO REI E DA
ARCA
Escrita por Emmir de Castro, para o Jornal do Brasil, em 04/06/1975
Certo dia a
divindade chamou o Rei no Céu e disse:
- Rei, não
vou te dar maiores detalhes, mas seria bom que você mandasses construir, dentro
de um mês, uma grande arca. Bem Grande!
Informado, o
Rei voltou e procurou do outro lado das montanhas da Capital um velho
fabricante de arcas.
O velho foi
chamado ao Salão Dourado e lá o Rei mandou que começasse a fazer uma arca tão
grande quanto a vontade de Deus. O ancião, taciturno e silencioso, recebeu a
ordem e foi embora para a sua tapera, onde já construía as melhores arcas do
Reino, ainda durante a vida do bisavô do soberano.
Um dos
sábios que cercava e planejava o Reino do monarca que, como bom monarca, também
era cercado por sábios, foi ao ouvido do Rei e argumentou:
- Majestade,
se é a vontade de Deus, acho que seria temerário colocar todo o projeto da arca
na dependência exclusiva do "know-how" do velho, cuja tecnologia,
pelos últimos relatórios recebidos, parece obsoleta se comparada com o que se
faz nos países que estudam o assunto, apesar de, como sabemos, não fabricarem
arcas. Eu aconselharia o Reino a criar um grupo de trabalho para coordenar o
"Projarca", como poderíamos chamar o projeto.
O Rei, não
gostava de grupos de trabalho, pois sabia que eles dificilmente se agrupavam
para trabalhar. Mas, tratando-se de um assunto onde estava a mão de Deus,
concordou.
Quinze dias
depois o ancião já tinha pronto o estoque de madeira com o qual ergueria a
arca. Técnicos do "Projarca", porém, duvidaram da qualidade do lenho
e representaram aos sábios do Rei.
Houve um
atrito entre o velho e um técnico. Os sábios, preocupados com a ranhetice do
ancião, foram ao Rei e solicitaram a criação de uma subsidiária para pesquisar
vegetais. Ela haveria de dizer, em pouco tempo, qual o tipo de árvore a ser
usado.
Resolveu-se
criar a "Peskarca". Ela teria a vantagem adicional de operar no
mercado, tornando-se lucrativa. Mas como uma empresa de pesquisas não podia
ficar subordinada a um grupo de trabalho, fechou-se o grupo e fez-se uma
superintendência, chamada "Superarca".
No vigésimo
dia do prazo descobriu-se uma gigantesca roubalheira no fornecimento de
equipamento e na venda de computadores à "Superarca", que já tinha 12
mil funcionários. Como havia pressa, não foi aberto inquérito, mas criou-se uma
gerência de controle, entregue a um probo servidor que passou a ter o título de
"Gerarca".
Este demitiu
2 mil funcionários, com a ajuda dos 5 mil que contratara, e informou aos sábios
que, entre os técnicos da "Superarca", havia até republicanos. Estes
foram devidamente processados, com exceção de alguns poucos que desapareceram.
Passados 25
dias do encontro do Rei com Deus, a "Peskarca" já dera um lucro de 2
milhões de estrelas, e a "Superarca", graças à fábrica de bandeirinhas
e à criação de pintos que mantinha nas granjas de apoio, renderam outros
quatro.
O velho fabricante
de arcas, esquecido, deixara de ir à Capital, até que descobriu que suas verbas
tinham sido repassadas ao Departamento de Relações de Imagens – “Imarca” -
encarregado de defender a imagem da "Superarca" em publicações
nerepublicanas.
Foi ao
Superintendente, que na época já era Vice-Rei de uma Companhia de Economia
Misturada, a "Comarca" e, depois de um diálogo áspero, onde foi
acusado de pretender rejeitar o sistema "Proarca", gerado pelos
computadores para encaminhar o fluxograma, acabou demitido.
O Rei soube
da dispensa do velho no trigésimo dia do prazo, quando foi chamado por Deus.
- E a arca?
- perguntou a Divindade.
- O Senhor
precisa me dar mais uns 15 dias. Está tudo pronto. Temos 25 mil funcionários
trabalhando dia e noite no projeto. Ainda não começamos a montagem, mas em
compensação, graças à versatilidade de nossos técnicos e de meus sábios, já
ganhamos mais de 50 milhões de estrelas aproveitando os resultados marginais do
projeto.
- O Senhor
tem mais 15 dias. Pode voltar. Mas cuida para ter tua arca no prazo.
De volta ao
Palácio, o Rei reuniu os sábios e determinou que a "Comarca"
apressasse seu trabalho. Para isso foi instituído um grupo de trabalho
interministerial.
Trabalhou-se
dia e noite e, passados 10 dias, a quilha estava montada. No 12º, surgiu o
perfil da arca. No 13º, a popa e, no 14º, o chefe dos sábios, numa cerimônia
fartamente ilustrada pela "Gazeta da Coroa", pregou a primeira tábua
na arca propriamente dita.
Na manhã
seguinte, o Rei soube que precisaria conseguir mais 10 dias com Deus.
Irritou-se,
tirou duas das três carruagens dos sábios e proibiu-os de usar mais de 32
vestes nas festas de cerimônia.
Ao alvorecer,
Sua Majestade já estava à porta de Deus, à procura de um novo adiamento. Foi
recebido por um santo que trouxe a má notícia.
- Não haverá
adiamento. Deus já te deu uma prorrogação e, afinal de contas, quando mandou
que fizesses a arca, já estava sendo benevolente.
Descendo o
caminho de seu Reino, o monarca começou a sentir que caía uma chuva fininha.
Três dias
depois, continuava chovendo. O Grande Salão Dourado estava inundado, como,
aliás, estava inundado todo o país. A corte, reunida, tinha água pela cintura.
Um dos
sábios, mais esperto, viu que surgia no horizonte uma pequena mancha. Era um
barco, um grande barco, uma arca.
- Mandem
parar aquela arca. De quem é aquela arca?
- Não
adianta. É do velho Noé, aquele que trabalhava para meu bisavô.
Ele não vai
parar - previu o Rei.
E Noé, que
em sua arca só levava bichos, foi em frente
Nenhum comentário:
Postar um comentário